CASTO
Havia chegado mais cansado naquela tarde do que nas outras. Não era apenas o esgotamento habitual do final de mais um mês de trabalho quando, além dos calos, trazia para casa alguns poucos mantimentos, o holerite recheado de descontos e uma meia dúzia de canhotos de carnês de prestação; apenas aqueles que conseguira pagar com o mísero salário que recebia. Dificilmente conseguiria quitar suas dívidas, ajudar nas despesas da casa dos pais e ainda terminar de construir a sua própria, no primeiro andar; obra que, embora simples, já se arrastava por mais de um ano. Ainda assim, pretendia casar-se de qualquer maneira após os festejos natalinos. Faltava apenas o dinheiro para o telhado. As paredes estavam erguidas, as portas e janelas encomendadas e as instalações, tanto a elétrica quanto a hidráulica, concluídas. Quanto ao reboco e o ladrilho, não fazia questão de luxos: Tendo as paredes que lhes amparassem do frio, um teto que lhes abrigasse da chuva, portas e janelas que os livrassem dos ladrões, o resto iriam conquistando juntos, com o passar tempo – era o que costumava dizer, na tentativa de advertir sua futura companheira das dificuldades que certamente teriam que enfrentar no início da vida conjugal, embora viesse sempre embutido em seu discurso um quê de esperança em dias melhores. – Apenas três coisas podia prometer à mulher de sua vida: o amor imutável, a lealdade em qualquer situação e a fidelidade a qualquer prova... À santíssima, trindade.
Entrou pela porta da cozinha, mais calado que o de costume. Colocou sobre a mesa o pequeno pacote que trazia. Sequer beijou a face de sua mãe, como rotineiramente fazia. De olhos ao chão, encaminhou-se preocupado para a sala e tirando das costas a mochila, largou-se sobre o sofá.
“Conseguiu?”, perguntou a mãe.
“Não!”, respondeu macambúzio.
“Mas como foi que o seu amigo conseguiu? Por acaso ele é melhor que você em quê?”
“Disseram que só dão este tipo de adiantamento a quem já tem mais de dez anos de casa. E eu só trabalho ali a dois, mãe”. Levantou-se, tomou um banho e recolheu-se ao seu quarto. Não quis saber de janta. Estava apreensivo demais para comer.
Desde que noivara, dormia no quarto construído sobre a casa dos pais. Na verdade, o primeiro cômodo concluído do seu futuro ninho de amor; os demais, por enquanto, eram apenas paredes sem acabamento, andaimes, sacos com areia, latas de carregar concreto, ferramentas desleixadamente espalhadas, além da estrutura devidamente preparada para receber a linha, os caibros, ripas e telhas.
Deitou, mas não dormiu. Uma ideia fixa lhe perturbava o juízo. Passara o dia arquitetando, tramando cada detalhe. Nunca se imaginara numa situação daquelas. Sempre procurou viver de acordo com os preceitos morais e religiosos da família, esperando uma recompensa divina, se não neste mundo, no outro.
“Silêncio lá embaixo...”, pensou. “Há esta hora já estão todos dormindo”. Abriu cuidadosamente a porta do quarto com medo de ser ouvido pelos pais. A cada minuto que passava ficava mais nervoso e angustiado pelo que estava por fazer. Talvez por isso tremesse tanto; ou talvez fosse pelo frio daquela noite de julho.
Caminhou sorrateiramente até a marquise e lá de cima contemplou a rua mal iluminada. Seus olhos buscavam algo que parecia tardar.
“Terei coragem?” falou consigo. A imagem de sua prometida surgiu ingênua e chorosa em sua mente. Por um segundo pensou em desistir, mas no fundo do seu coração sentia-se tentado a ir até o fim. Sacudiu a cabeça como se tentasse acordar de um pesadelo – a lembrança da noiva só tornava as coisas mais difíceis para ele.
Na varanda do apartamento em frente à sua construção a luz de uma lâmpada piscou uma, duas, três vezes em intervalos regulares.
Sentiu o rosto enrubescer, o intumescimento dos lábios, o aumento dos tremores na musculatura – àquela altura tinha a certeza de que tal sensação não tinha nada a ver com o vento frio.
“Filho!”, gritou a mãe, trazendo-o de volta à realidade. “Ainda sem dormir? Ouvi passos sobre a laje”.
“Estou sem sono, mãe”, respondeu. “Estava aqui, pensando na vida”, falou, tentando disfarçar. “Será que ela sabe?”, pensou.
“Querido, ficar pensando besteira não vai valer de nada. A vida não acabou porque não lhe deram o adiantamento. Tenha fé. Deus vai mostrar um caminho. Você vai conseguir terminar sua casa”.
“Eu sei, mãe, não se preocupe comigo, vá se deitar. Eu estou bem”.
“Só vou quando você for”, disse a mãe desconfiada. “Venha! Vou ficar com você até o seu sono chegar”.
A lâmpada da varanda do apartamento piscou mais uma, duas, três vezes.
Precisava se livrar da mãe para prosseguir em seu intento, por isso, mesmo a contragosto, aceitou o convite e retornou ao quarto.
A preocupada senhora sentou-se na cama e fez sinal para que o rapaz pousasse a cabeça em seu colo. Enquanto ela acariciava o rosto do filho proferindo palavras de consolo para banir qualquer ideia agourenta de sua cabeça, ele via pelo basculante que a luz piscava novamente no apartamento da frente.
Por mais de meia hora a mãe ficou ali, tentando adivinhar os pensamentos do caçula, enquanto ele fingia pegar no sono ao mesmo tempo em que, pela nesga dos olhos semicerrados, assistia ao acende e apaga da lâmpada em intervalos de tempo cada vez menores, acelerando-lhe o coração. Pouco antes da saída da bondosa mãe, quase às duas da madrugada, a luz piscou novamente e, mais uma vez e mais uma, porém ele já não podia ver. Simulara com tanto realismo o sono que acabou por trair-se, adormecendo de verdade.
O sol o obrigou a abrir os olhos. “Até que horas terá me esperado?”, pensou. Estava feliz por ser ainda o mesmo e, por pelo menos mais um dia ter mantido o seu trino voto: o amor imutável, a lealdade em qualquer situação e a fidelidade a qualquer prova... Se a lâmpada da varanda não voltasse a piscar na noite seguinte, conforme o combinado.