MEMÓRIAS FAMILIARES (4) Pescaria

[Em seguida ao acidente com a espingarda], meu coração pendeu de vez pra pescaria, que essa eu já apreciava bastante, causa que tio Messias mais tio Rubens — com seu Orlando, Carabina, Praça, Geraldinho Anão, Maçarico — esses eram os maiores pescadores das redondezas. Por isso foi que pai, mesmo sem gostar muito, passou a me levar pra pescar. Me ensinou a preparar as varas — cortar na lua certinha, limpar, sapecar, passar sebo, deixando-as flexíveis e reluzentes — a encordoar, a fazer cabresto, a encastoar anzóis, a manufaturar chumbadas em orifícios de tijolos; e, depois, comprou botina, caxerenga de ponta e bainha; tia Clélia botou pano num chapeuzinho de palha e fez roupinha de pescador aprontada no jeito. E pai punha também sua indumentária e lá íamos pra todo lado pescar.

E, aí, numa madrugadona de quinta-feira, pai arrancou minhoca, cortou toucinho, arrumou feixe de varas, amolou o facão Jacaré, ajeitou o embornal, pegou a bolsa de matula que mãe aprontou, embalou o litro de café num pano, ajeitou bem e amarrou tudo em cima da bicicleta emprestada pelo tio João, me botou na garupa e disse: — Hoje nós não vamos bater mandi-guaçu no Rio Itaici, e sim vamo no Rio Mumbuca, na curva da Escolinha, que me informei e lá piaba ‘stá puxando muito! E fomos nós, que pescaria, eu fiquei repetindo sem parar, era mais divertido do que ficar caçando e atirando nos bichos. E na barra do dia pai subiu pelo alto da Vila Nova, cruzou a pedreira, e lá de cima me mostrou o Morro do Selado; depois desceu pelos fundos da fazenda da dona Corina, atravessou o pontilhão, passou pelo Matadouro, pegou o rumo do Serrote, até chegar ao poço da Escolinha. E o pai foi me mostrando os melhores poços de pesca daquele trecho: Matadouro, Dona Corina, Pitangueiras, que pescador tem que ir crescendo já sabendo dessas coisas, ele falava.

Batemos a manhã inteira, e nada de conseguir virar o braço da viola! Três ou quatro lambaris, dois timburês, um tambi, um canivete e somente isso. Pai mudava de um poço pro outro, experimentava na corredeira, trocava de isca, pegava milho verde nos roçados e nada, as piabas não puxavam de jeito maneira. Foi descendo pelos Borges abaixo: João Chico, João Borges até o antigo pari — e nada! Pai desanimou, deixou lá umas pindas pra mandis, um lambari iscado na corredeira pras tubaranas e outro enfiado em meio às capituvas pras traíras, depois escolheu uma sombra e disse vamos calçar os peitos que mais tarde melhora. E abriu o bornal de matula, destampou o café, passou uma água nos copos, foi comendo, servindo e conversando comigo, explicando os perigos dos anzóis e peixes (esporada de mandi, espinhada de cará, dentada de tubarana), ensinando queimar estrume para afastar pernilongo, contando causos do preto velho Marcilino, que essas histórias eu gostava muito, cantando modinhas, declamando Catullo da Paixão Cearense:

Eis aqui seu moço
A estória que eu vou contá
A razão porque nasce branca e roxa
A frô do maracujá


Depois do almoço, saiu mostrando as plantas e os bichos que havia no mato, apontando os rastos de lontras, as pisadas de saracuras, os caidores de capivaras, as trilhas de pacas, os buracos de tatus, as casinhas de joão-de-barro, os ninhos de guaxe, as colmeias nos barrancos.

Duas da tarde, hora de mais pescaria. Se de manhã deu lambari, depois do almoço nem isso. Pai olhou no relógio: cinco horas. E nadinha de peixe beliscar a isca. Subimos mais um pouco e pai encontrou o Chá Preto, na outra margem do rio. Pai gritou: — ‘Tá puxando aí, Chá? E Chá respondeu: — Uai, Dé, só debaixo da gaiada, na isca de fígado e no sangue. E levantou a fieira da água: um cambão de piabonas e curimbas. Quase caí duro, pois peixe bitelo assim só o tio Messias e tio Rubens é que sabiam pegar. Pai pediu e o Chá jogou um naco de fígado. Parti logo um pedacinho, isquei a varinha pegadeira e fui enfiando ela por sobre a linha do Chá, que era ali que as bichinhas ‘tavam puxando. Pai falou: — Guima, respeita o ponto de quem chegou primeiro. Chá riu e disse: — Deixa o menino, Dé. Pai falou: — Melhor aprender desde cedo, Chá. E me arrastou água arriba, até chegar na primeira curva, onde atravessamos uma pinguela e paramos numa tranqueira de paus, na entrada de uma corredeirinha leve que tinha. Pois foi ali, na boquinha da noite, com a isca de fígado que o Chá nos deu, que ainda conseguimos lavar a égua, salvar o dia e evitar a gozação do tio Mário que iria ficar falando o resto da vida que a gente tinha voltado sapateiro. Prova? Olha a foto que ilustra essa narrativa, sô!

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Guima e a fieira de peixes, em frente à antiga Escolinha, no bairro Serrrote


    

Bordado feito por minha sogra (Tal Salles Krauss), que ilustra este capítulo do meu livro Menino-Serelepe


(*) Esta narrativa faz parte do livro Menino-Serelepe - Um antigo menino levado contando vantagem, uma ficção baseada em fatos reais da vida do autor, numa cidadezinha do interior de Minas Gerais, nos anos 1960.
 
O livro é de autoria de Antônio Lobo Guimarães, pseudônimo com que Antônio Carlos Guimarães (Guima, de Aguinhas) assina a série MEMÓRIAS DE ÁGUINHAS. Veja acima o tópico Livros à Venda.