EVANGELHO E ESPIRITISMO (1) 
 
Quantas outras verdades encerra o Evangelho e que surgirão a seu
tempo! (O Evangelho segundo o Espiritismo, capítulo XV).

Inscrevendo no frontispício do Espiritismo a suprema
lei do Cristo, nós abrimos o caminho do Espiritismo cristão; temos,
pois, motivos para desenvolver os seus princípios, bem como os
caracteres do verdadeiro espírita sob esse ponto de vista.
(Allan Kardec, Revista Espírita, abril de 1866)

Apresentação

Este post Qual é a melhor religião? abre a série EVANGELHO E ESPIRITISMO, do site GUIMAGUINHAS, cujo índice está no pé desta página.

Nesta série vão textos sobre minha vivência religiosa. Como se pode ver do trecho abaixo, extraído de minhas memórias de infância (*), eu tive uma criação religiosa que misturou o lado Católico de minha mãe e o Espírita de meu pai. Além disso, desde menino frequentei o ambiente Protestante e tive influência de minhas tias, que foram Umbandistas.

Mas essa criação e essas visões religiosas 
me impregnaram de um profundo senso ecumênico e de forte respeito pelas crenças dos outros.

E é essa, pois,  a tônica deste espaço virtual — tolerância, amor e respeito para com todas as crenças religiosas que nos conduzem ao Bem.
 

Qual é a melhor religião?
 
Para o tio Joãozinho Bode,que
me ensinou muitas coisas.
 

Como ficou registrado noutro trecho do livro Menino-Serelepe*, eu fui criado na religião católica, mas possuía avós kardecistas e tias umbandistas, além do que frequentava a comunidade protestante que se situava defronte a minha casa. Desse modo...

... foi que colhi de minha mãe, de minha vó Cema e de toda família dessa uma fé profunda no Catolicismo, no qual fui criado, me casei e batizei os meus três primeiros filhos.

Meu pai, na esteira de meus avós, seguia o Espiritismo, mas nunca pôde praticar, que mãe não aceitava isso. Mas ele permaneceu na sua fé. Assim, pelo ramo de meu pai e de meus avós paternos, desde menino recebi orientação espírita, tomava passes, assistia às sessões domésticas de mediunidade e o Espiritismo se tornou pra mim coisa bastante natural. E, além de tudo isso, ainda havia minhas tias que durante certo tempo frequentaram a Umbanda, sobre a qual acabei me informando e passei a entender os seus ritos e a respeitar as entidades lá cultuadas, que eu sempre fui muito curioso com esses assuntos de religião.

Essa minha formação e criação religiosas que poderiam ter resultado num sincretismo confuso e desorientador, na verdade, me impregnaram de um profundo senso ecumênico e de forte respeito pelas crenças dos outros. E em todas essas crenças com que tive contato, o cerne sempre foi a prática do bem com base nos Evangelhos de Jesus. Depois do desencarne de meu pai, passei a estudar e frequentar o Espiritismo. E foi em adulto que esse meu sentimento em face das religiões ainda mais se firmou, quando tomei conhecimento da seguinte passagem do Dalai Lama:

— Santidade, qual é a melhor religião? perguntaram.

E, quando todos imaginavam que ele responderia que se tratava do budismo tibetano, o sábio mestre respondeu:

— A melhor religião é a que te faz melhor: mais humano, mais compassivo, mais amoroso e mais respeitador do teu próximo. Esta é a melhor religião.

Ainda em criança, dois fatos foram marcantes para acentuar o que está posto acima. Quando conversava com o meu avô sobre o Espiritismo e cheio de dúvidas porque minha mãe sempre fechou questão quanto a eu seguir as crenças do meu pai e de meus avós... [recebia boa orientação.]
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Recolhi dessa conversa a mais vívida emoção e a cabal afirmação dos sentimentos de amor ao próximo, de respeito às crenças religiosas que conduzem ao bem e às pessoas de cor diferente da nossa. E preconceitos dessas espécies jamais me frequentaram a alma. E o caso seguinte só me fez consolidar tudo isso.

Eu estava ajudando e aprendendo na farmácia, quando o tio João disse: — Pega a Patavium do seu pai e vamos me ajudar num caso lá da Vila Nova. Trepei na magrela e acompanhei o tio João que seguia à frente levando uma caixinha de primeiros socorros e a seringa de injeção. Entramos pela Vila Nova e fomos até o fundo da Rua do Arame. Quando paramos, tio João desceu, encostou a bicicleta numa velha cerca de bambus podres e eu fiz o mesmo. Afastou uns ramos secos de chuchu, passou por um vão do cercado e eu fui atrás. Andou até um casebre de taipa existente a um cantinho do terreno e eu na cola. Afastou uma porta caindo aos pedaços e foi entrando sem bater. Eu ia fazendo o mesmo, mas recuei, pois uma fedentina terrível exalava do fundo da escura casinhola de um só cômodo. Tio João disse — ‘Guenta firme, sô, e vem me ajudar. Abra a janela. Segurei a ânsia que me acometia, dei dois passos, baratas correndo, uma pulgueira subindo pelas pernas, mas soltei a tramela e fiz o mandado. — Agora chega perto e vem ver. Tapei o nariz e fui me aproximando e o quadro que vi era pavoroso e de cortar o coração: um negro muito velho, puro osso, quase cego, com uma bicheira no nariz e os vermes a lhe comerem as carnes. E uma voz fininha, quase inaudível, meio sufocada, arquejante, que já havia vermes lhe caindo à garganta por um furo no céu da boca, disse: — Eh, Joãozinho! Toss! Agora ocê trouxe ajuda! Toss! Toss!

E eu vi aquele meu tio João de modos ásperos, que parecia estar sempre zangado e bravo com alguma coisa, ir suavemente retirando os vermes, um a um, com uma pinça e depositar numa vasilha que eu segurava. E ele foi conversando com o velho e brincando e fazendo graça. E suas mãos hábeis e firmes desinfetando, aplicando remédios, sarando a ferida. E eu do lado, lágrimas nos olhos, pondo reparo, admirando o meu tio, segurando a mão esquálida daquele fiapinho de gente e gemebundo, ao mesmo tempo em que tomava uma aula prática de amor ao próximo e de caridade cristã que jamais tomara antes.

Sozinho no mundo, o depauperado Levindo — esse era o seu nome —, que vivia de déu em déu, passou a morar de favor naquele casebre, ao Deus dará, jogado numa enxerga suja posta sobre uma tarimba podre e vergada. Quando lhe levavam o de-comer, comia; quando lhe davam o debeber, bebia; quando não, passava sede e fome. Numa ferida no nariz sentou-lhe a varejeira e ele ficara lá muitos dias à míngua, até que alguém pediu ajuda na farmácia, dizendo que o povo dizia que o pobre coitado estava de sina e arranjara coisa feita. Voltamos lá diversas vezes, agora levando comida pronta, mantimentos, água, colchão, roupas e substituímos uns cacarecos que por lá havia. E eu fui vendo o velho ir, aos poucos, melhorando. Vi seu corpo se recuperar e ficar menos sumido dentro das roupas, vi seu rosto se iluminar, vi seu sorriso voltar, vi seus olhos úmidos de lágrimas, vi o abraço forte e emocionado que deu em meu tio, quando, finalmente, ficou bom.

Qual é mesmo a melhor religião? A vida me ensinou que certamente é aquela que nos torna melhores, pouco importa qual seja!

Vocabulário de Aguinhas

Patavium - Antiga bicicleta sueca, que pertenceu a meu pai.
Magrela - Bicicleta
Taipa - Paredes feitas de barro, que é preso a paus aprumados, aos quais se entrelaçam, com cipó, pequenas varas finas.
Enxerga - Manta de capim para selar animais, que se usa também como colchão.
Tarimba - Estrado de madeira ou paus para dormir.
De déu em déu - sem lugar fixo; de lugar em lugar; andante
De sina - Estar de sina = estar de má sorte, azarado.

Índice da Série EVANGELHO E ESPIRITISMO
(*) Esta narrativa faz parte do livro Menino-Serelepe - Um antigo menino levado contando vantagem, uma ficção baseada em fatos reais da vida do autor, numa cidadezinha do interior de Minas Gerais, nos anos 1960, de autoria de Antônio Lobo Guimarães, pseudônimo com que Antônio Carlos Guimarães (Guima, de Aguinhas) assina a série MEMÓRIAS DE ÁGUINHAS. Veja acima o tópico Livros à Venda.