O gato e o cachorro
UMA FÁBULA SEM MORAL DA HISTÓRIA
O gato saiu de seu moquifo, todo preto, para a noite. Eram verdes seus olhos, tais como pistaches fendidos, e giraram em torno observando os arredores do beco onde estava com arguta e altiva placidez, tão típica quanto inata nos felinos. Viu por ali o cachorro. Este era marrom – ou, melhor dizendo, acastanhado – o qual, ao ver-se observado em suas atividades caninas, enfureceu-se, latindo assim:
– Gato, gato preto, parcela peluda da noite! Não vens tu cá para vigiar-me, pequena fúria abissal da natureza, tormento atávico da minha espécie... vens?! Pois saiba que me controlo por não correr, quadrúpede impetuoso que sou, perseguindo a miserável e esquiva figura negra que és. Anda, vai, afasta-te daqui, deixa-me fossar em paz este lixo, em busca de consolo e manutenção corporal.
O gato então miou, sorrindo sarcasticamente:
– Tolo cão, mais digno de pena que de inimizade! Então rastejas teu focinho pela pútrida sobra humana, quando tudo que deverias fazer é tomar, se não pela força através da astúcia, o teu direito ao sustento? Como vives é uma afronta à própria vida. Lamber o minguado restolho daqueles que se reúnem, em uníssona opinião, considerando-te um exemplo de fidelidade, um ícone da lealdade... será que possuis alguma noção, alguma percepção do teu ridículo?
O cão ergueu o embora sujo, mas bem desenhado focinho, para rosnar:
– A honra pode às vezes confundir-se com a humildade; contudo, sua essência é nobre e assim se mantém. Mas que sabes de honradez, tu, massa gatuna de egoísmo? Nada conheces de amizade real, agindo sempre por interesse, abandonando os que a ti se afeiçoam tão logo não tenham mais utilidade frente aos teus propósitos. Eu, por outro lado, já tive um amigo... um dono, a quem fui fiel. Sim, fiel como nunca um felino poderia jamais ser. Está ele agora morto. Não mais terei outro dono – e assim conservo minha lealdade, como uma esposa que se mantém viúva por toda vida. O luto que tão inadvertidamente carregas é meu, roubado, como tudo que possuis – ou imaginas possuir.
O gato eriçou os indignados pelos, e seus olhos desferiram chispas esmeraldinas. Guinchou:
– Um dono? Um mestre, um garoto que me sufoque entre seus braços desengonçados, uma velha solitária que me afague e me dê algum leite? Ora, faça-me o favor! Que ideia, ser dependente como um bebê a vida inteira, lançado em almofadas, semimorto, engordando e soltando todos os pelos da carcaça até nada restar que encubra um corpo inchado, adiposo, pesado. Pois nunca! É disso que tens saudade, é pela perda disso que lamentas, aí, com o nariz colado à carniça, à imundície do dejeto humano? Aí buscas compensação pelo que perdeste – ou imaginas ter perdido?
O cão então ganiu, afastando-se rapidamente dali, desgostoso e deprimido:
– A possibilidade de morrer foi tudo que ainda não perdi!
O gato observou o cachorro desaparecer na esquina do beco. Depois disso perdeu-se na noite, sua única dona, ganhando os telhados e, com eles, as estrelas do céu.