MENTIRAS
                                       Cansado, mas satisfeito por ter concluído os cálculos de um processo e por ter escrito o recurso de mais uma ação, saí do escritório em direção à garagem para, antes de relaxar em casa, fazer uma visita dolorida a minha mãe, em tratamento de radioterapia para um câncer de tireóide.
                                  Na subida da Mal. Floriano, em meio ao burburinho, ia relembrando aqueles meses que tinham se passado desde a descoberta da doença. Fui mais além, lembrei de quando terminava a Faculdade de Medicina e meu pai me chamara para uma conversa em particular. 1976: ano da formatura. Ela tinha feito um exame, cujo resultado havia sido apanhado por ele no laboratório. Ao chegar em casa, ele me chamara para uma conversa reservada, pedindo que examinasse o resultado antes de mostrar a ela. O diagnóstico era câncer de colo de útero e ele ficara assustado. Antes que dissesse qualquer coisa, pediu-me que nada dissesse a ela sobre o resultado. Meu pai estava me pedindo que mentisse, contrariando o que sempre me exigira: falar a verdade sempre. Fui até o hospital, identifiquei-me como formando em medicina e consegui que um novo laudo, fictício, fosse elaborado com o diagnóstico de “fibroma uterino”. Nos dias seguintes, deixei, de propósito, meus livros de anatomia e patologia na sala do apartamento onde morávamos. Diante do resultado dos exames, a medicina científica da época estabelecia que a única solução seria uma cirurgia de remoção do útero.
                                        Ela leu. Tal como eu sabia que faria.
                                Dias depois cheguei em casa e ela, eufórica, disse-me que tinha consultado um “padre” de uma certa igreja da cidade e que a tinha desaconselhado sobre a cirurgia. Bastava que tomasse os chás por ele preparados e vendidos, que tudo estaria resolvido. Fiquei indignado, não só por ter sido desconsiderada a ciência em que me formava, como pela falsa crença em poções milagrosas, desde que “receitadas” por um padre. Minha reação foi intensa: peguei os três frascos de “preparados” e joguei-os no lixo. Minha mãe ficou desconsertada com minha atitude radical. Dias depois, mais calma, revelou-me que aceitaria fazer a cirurgia.
                          Passados mais de vinte anos, estávamos novamente diante do mesmo drama. A diferença no local da patologia era significativa, porque envolvia diferença no tipo de câncer.
                              Num dia, carregando-a para a sessão de radioterapia, ela, fatidicamente, me repetiria uma frase dita por meu pai, quando o deixei no elevador do Hospital Ernesto Dornelles, antes de ele morrer:
                                        - Desta vez é grave, meu filho.
                         
       E eu menti, como uma vez ele havia me pedido.
                                           Naquele jardim do Centro de Terapia de Câncer, menti, mais uma vez, para minha mãe. Contei a ela sobre o câncer de útero que havíamos escondido e falei de várias pessoas que tinham passado por esta situação e que haviam sido curadas.
                                       Todas as outras vezes em que menti para os meus pais, fui descoberto e castigado. Mas já não havia mais espaço para castigo nestes novos tempos. Até porque, tantos anos passados, mentira e verdade se confundem. Sinceridade é extremamente importante, mas o amor está acima de tudo.
                                      Não sei o quê meu pai teria a dizer sobre a última mentira que contei a ele, da mesma forma como não sei o que pensaria minha mãe sobre a última mentira que contei a ela.
                                  Mas, naquele dia, depois de ter subido a Mal. Floriano e ter pego meu carro na garagem, fui para o apartamento dela, cumprindo o ritual de meses.
                                    Ao chegar no apartamento, uma de minhas irmãs disse-me que ela havia me chamado o dia todo, embora permanecesse num estado de catatonia, sem reconhecer qualquer pessoa presente.
                                 Lembrei dos monólogos de dias anteriores, quando, sentado no chão e com as mãos no colo dela, repeti, insistentemente, o quanto ela era importante para mim e o quanto eu a amava. Agradeci a ela ter cuidado de mim e prometi que continuaria cuidando dela para o resto da vida.
                                 Neste dia, entretanto, ela parecia ter saído do estado catatônico e pedira para falar comigo. Ajoelhei-me, como sempre, à sua frente e disse-lhe que estava ali.
                                   Ela desviou o olhar do infinito e fitando-me disse:
                                   - Eu te amo.
                                  Foi a primeira vez que ouvi isto de minha mãe. E também a última, pois dias depois ela morreu, sem ter dito uma única palavra a mais.
Nelson Eduardo Klafke
Enviado por Nelson Eduardo Klafke em 07/03/2013
Reeditado em 15/04/2014
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