OS NUS DE SAMANTHA
 
                                  Havia se separado na maturidade dos 35 anos. Apesar da gravidez de um casal de filhos, a natureza ajudara-a a manter o corpo razoavelmente preservado. Nada que uma cirurgia de redução de seios e uma plástica de abdome não pudessem devolver o quase esplendor de um corpo que fizera muito sucesso no auge dos anos que antecederam o casamento.
                                  Nos meses que se seguiram à separação, propôs-se a uma economia forçada, com redução em gastos na condução dos filhos ao colégio (sacrificava o almoço e saía do Tribunal de Justiça para buscá-los em casa, no Menino Deus e levá-los ao Colégio Sévigné, na Duque de Caxias;  compensava entrando mais cedo para poder buscar os filhos no final das aulas). Limitava, ainda, outras despesas, como cremes especiais, visitas semanais a cabeleireiros e institutos de beleza, encontros com amigas em restaurantes caros nas quintas e outras renúncias menores, mais fáceis de serem suportadas; enfim, um “enxugamento do orçamento”, como gostam os economistas.
                              Em seis meses tinha o bastante para a plástica do abdome, eleita como prioritária.
                                  O resultado foi tão satisfatório que a nova fase de contenção de despesas foi marcada pela ausência de qualquer sentimento de perda.
                                    Sorria, mesmo quando presa no trânsito na hora do almoço e exultava quando percebia o tanto que havia economizado ao cortar, ela própria, os cabelos outrora tocados apenas por “experts” de salões famosos. No espelho, elogiava-se pela recém-descoberta destreza em pintar as unhas, aplicar maquiagem, ajustar roupas. Além disso, a suprema felicidade em encontrar roupas maravilhosas em lugares jamais imaginados, por preços altamente compensadores e ainda ser elogiada pelas amigas pelo delicado bom gosto em vestir-se.
                                  Oito meses mais tarde, a cirurgia de redução de seios.
                            Perfeitos, pensou, ao olhar os seios no espelho, após a completa cicatrização da cirurgia.
                                  Aproveitou o espelho para dar uma olhada no resto do corpo. “Harmonia” foi a palavra que ocorreu a ela ao ver a imagem.
                            Subitamente, um certo desconforto iluminou-se num canto qualquer do peito. Vencera a batalha e aguardava os louros dos vencedores. Imaginou a passeata em hasta pública, com o Medo e a Baixa Auto-Estima, conduzidos à força por soldados romanos devidamente paramentados, ajoelhando-se aos pés dela e finalmente reconhecendo a derrota.
                                  Deu-se conta que não pensara neles nos tempos de luta. A determinação com que se dedicara a alcançar seus objetivos não lhe dera tempo para relembrar as inseguranças que haviam se instalado gradativamente nos intermináveis dezessete anos de casamento.  
                                  Tentou desligar a luz que desvendara o desconforto no peito e descobriu que tais luzes são desprovidas de interruptores.
                                  “Ignore-os”, disse-lhe sussurradamente, uma velha e conhecida voz interior. “Ignoro-os”, respondeu Samantha.
                                  Os meses seguintes foram de oscilação entre a satisfação pelas conquistas e a dúvida sobre a importância delas. Havia eliminado o marido, o casamento e anos de insatisfação com o próprio corpo. Era de novo a menina de dezoito anos, exceto pela ausência da virgindade e a presença de dois filhos adolescentes.
                                  As dúvidas começaram a se dissipar quando descobriu que o príncipe encantado era uma invenção de madrastas mal resolvidas. Festas e bares noturnos estavam cheios de sapos que, ainda que fizesse o maior esforço do mundo, não se transformavam em príncipes. Aos poucos, começou a se retrair. Tentava participar da vida dos filhos, mas eles se afastavam cada vez mais para viverem as próprias vidas.
                                  Com o tempo desistiu das coisas do coração, sem desistir das coisas do corpo. Continuava na academia de ginástica, fazia sexo eventual e acompanhava o crescimento dos filhos.
                                  Quando a filha mais velha casou, mudou-se para o Rio de Janeiro e o filho mais novo foi viver na Austrália, teve um choque. Tudo aconteceu quase ao mesmo tempo. Tinha 50 anos, mas o corpo tinha 40 anos, pelos cuidados com alimentação, exercícios físicos, um botox aqui, outro ali, uma ou outra leve correção cirúrgica. A saída dos filhos trouxe a sensação de solidão.
                                  Foram dias difíceis. Foram dias que se estenderam por meses. Foi aí que Samantha resolveu parar o tempo. Faria uma sessão de fotos nua. Precisava resgatar o momento em que deixou de atuar com mulher, sem que tivesse deixado de se sentir mulher. Fotos. Andava à procura de um fotógrafo, quando uma amiga recente, Susana, sugeriu uma pintura. Excelente idéia, pensou ela. Foram meses de pesquisa, até encontrar uma pintora, formada pela UFRGS e que se especializara em pintar nus. Confessara a Susana que somente se sentiria à vontade de posar nua diante de uma mulher. Mas o trabalho foi compensador. As quatro telas, em poses diferentes, tinham ficado magníficas. O corpo perfeito. E, no rosto, a candura de seus 18 anos, expresso pelo olhar delicado e carinhoso, embora retratasse com fidelidade a mulher madura.
                                  Ao chegar em casa com os quadros, deu-se conta de que não havia planejado o local onde colocá-los. Somente a sala dispunha de espaço suficiente, mas seria exposição demais. Não tinha coragem para tanto. O ideal, por certo, exigia um lugar mais íntimo. O quarto! Inviável. Por trás da cama, uma estante, com prateleiras preenchidas por mil badulaques e lembranças de viagens. No lado oposto, o raque da tv, um enorme espelho e a porta de entrada no quarto. À esquerda, o acesso ao banheiro e um roupeiro que ocupava o que restava da parede. À direita, a janela e o acesso à sacada. Bolou inúmeras soluções: retirar o espelho, colocar o roupeiro no quarto de empregada, desmontar a estante da cabeceira da cama. Embora cada solução indicasse incômodo, alguma perda, despesas extras, tinha dificuldade em renunciar aos nus maravilhosos que congelavam sua maturidade numa bela imagem que, ao contrário, tenderia a se deteriorar com o tempo.
                                  O roupeiro, decidiu. Tomadas todas as medidas, reduzida a parte das prateleiras (decididamente largas para o tamanho das blusas,  camisetas e outra peças que não dependiam ser passadas ao serem usadas), o caso estava resolvido. Chamou Manoel, marceneiro conhecido de tempos e removeu o roupeiro para o quarto de empregada há muito desocupado.
                                  Uma pintura, com cor especial, na parede vazia, serviu de fundo para os quatro nus magnificamente emoldurados.
                                  O espelho à frente da cama duplicava a imagem dos quadros. Deitada na cama, Samantha deliciava-se com as múltiplas imagens que via. Anos passassem, o tempo haveria de ficar parado naquele momento especial.
                                  Enlevada neste momento sublime, demorou a perceber o telefone tocando. Era a filha, Camila.
                                  - Mãe, gostaríamos de te visitar neste fim de semana. Melissa fala muito que quer conhecer a vovó. O que tu achas? Sairíamos do Rio na sexta, pelas dezoito horas e chegaríamos aí por volta das dezenove e trinta, vinte horas.
                                  Samantha ficou emocionada. Depois de três anos, a filha viria visitá-la. Começou a planejar a visita. Deixaria a cama de casal para os dois, dormiria com a neta no quarto que fora dos filhos, providenciaria as frutas para o desjejum, precisava ir ao supermercado. O almoço, um salmão com alcaparras e salada. À noite, iriam na pizzaria que costumava frequentar com as amigas e, no domingo, o churrasco tradicional. Imediatamente retirou os vasos de flores da churrasqueira e desobstruiu a sacada, colocando os entulhos na garagem.
                                  Foi então que olhou os nus na parede do quarto.
                                  Imaginou a filha e o genro, deitados na cama, olhando os nus na parede.
                                  Imediatamente, recolheu os quadros e os guardou no roupeiro instalado no quarto de empregada.
                                  Nos anos que se seguiram, Samantha envelheceu apenas gradativamente. Quando estava sozinha, permanecia jovem, com os quadros na parede do quarto. Quando recebia visita dos filhos, envelhecia nos quadros colocados no quarto de empregada.
Nelson Eduardo Klafke
Enviado por Nelson Eduardo Klafke em 06/03/2013
Reeditado em 24/07/2014
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