Análise do conto " Uma Senhora" de Machado de Assis
O presente trabalho consiste em fazer uma análise a respeito dos aspectos narcísicos presentes no conto “Uma senhora” de Machado de Assis que se encontra no livro Histórias sem data. Para abarcar as características do narcisismo presentes no conto, recorremos a Sigmund Freud, Melanie Klein, Otto Kernberg e outros teóricos que contribuíram com os estudos da psicanálise para tratar do tema narcisismo.
Na teoria de Freud, narcisismo é o investimento da “libido” no próprio ego. Todo sujeito tem o seu componente narciso. No primeiro parágrafo em: “- A senhora, D. Camila, amou tanto.a mocidade e a beleza, que atrasou o seu relógio...” e em: “ com suas mãos eternamente moças.” Esses fragmentos reafirmam o pensamento de Freud que coloca o narcisismo como uma fase intermediária entre o autoerotismo e o amor do objeto, na qual o sujeito toma o próprio corpo como objeto de amor. D. Camila não aceita a velhice e faz artimanhas para não demonstrar a sua idade, pois esta tinha pavor em envelhecer.
No segundo parágrafo, no trecho “Cada vez que D. Camila queria ir-se embora, eles pediam-lhe muito que ficasse, e ela ficava. Vinham então novos folguedos, cavalhadas... inventadas com o único fim de impedir que esta senhora seguisse o seu caminho.” Percebe-se mais uma característica do narcisismo: todo narcisista tem uma plateia, e esta faz projeções. Neste caso, as pessoas faziam projeções em relação à beleza de D. Camila, e esta adorava se destacar entre as pessoas. É importante ressaltar que há uma atração mútua entre a plateia e o narcisista. Segundo Heinz Kohut, o exibicionismo e a grandiosidade arcaica podem vir a se transformar em autoestima e prazer consigo próprio.
No quarto parágrafo, “Ernestina estava então entre quatorze e quinze anos... Não se divertia com as meninas de oito e nove anos; não importa, uma vez que deixasse a mãe tranquila, podia alegrar-se ou enfadar-se.” Nota-se que D. Camila procurou atrasar ao máximo o amadurecimento da filha, tratando-a como criança e vestindo-a como menina, sua infância foi prolongada devido aos caprichos da mãe, até o momento em que não lhe foi mais possível. O narcisista tem ausência de superego(a lei, a censura, o controle); seu superego é fraco, ele superprotege quem faz par com ele. Percebe-se também o tormento que era envelhecer para a alma de uma mulher vaidosa como D. Camila. Ela age defensivamente em todo momento utilizando o mecanismo de negação.
No quinto parágrafo: “... Deixava às outras o trabalho de envelhecer. Só queria o de existir.”, há uma negação da percepção do limite por parte do narcisista. Nesse trecho nota-se que D. Camila escolhe a si mesmo como objeto de amor. No mesmo parágrafo em: “D. Camila sabia disto; sabia que era bonita, não só porque lho dizia o olhar sorrateiro das outras damas...” Todos nós temos sensibilidade estética, e não é apenas da imagem física e sim para o belo. As outras damas devido a beleza de D. Camila ficavam com inveja, onde para Otto Kernberg, a inveja é um elemento patogênico determinante dos distúrbios narcísicos. Camila provavelmente ainda criança era bonita, e as pessoas que possuem harmonia de traços, naturalmente apresentarão uma tendência ao narcisismo por serem elogiadas desde muito cedo. O narcisismo sempre será de imagem, nesse trecho o que prevalece é a imagem física. R. Stevenson defende a questão da imagem de perfeição idealizada; a persona que deseja mostrar no relacionamento com o mundo e o confronto solitário com as partes negativas. No trecho “finalmente, que era honesta. Não era, note-se bem, por temperamento, mas por princípio...” fica claro a imagem moral de D. Camila. Para André Green, no narcisismo moral há um empobrecimento e renúncia dos investimentos objetais, com a finalidade de ser reconhecido como melhor pela renúncia.
No parágrafo seguinte, em “Nenhum defeito, pois, exceto o de retardar os anos...” é importante ressaltar que Machado de Assis, assim como no conto O espelho, aborda o tema de Narciso através da questão do reflexo, da imagem que a pessoa faz de si mesmo, a persona, em detrimento da verdadeira pessoa; Machado discute o problema da perda da identidade e da individualidade, quando o ser de identifica com a função e o papel social que desempenha. Nesse mesmo parágrafo em: “ela apegava-se à ilusão da estabilidade. Só lhe podia exigir que não fosse ridícula, e não era.” O narcisista não aceita críticas e tem uma imagem de invulnerabilidade: não admite ser vulnerável.
No trecho “ A filha de D. Camila que entrava nos dezenove anos, e, por mal de pecados, bonita. D. Camila prolongou, quanto pôde, os vestidos adolescentes da fila, conservou-a no colégio até tarde, fez tudo para proclamá-la criança.” que encontra-se no oitavo parágrafo, é momento que D. Camila faz uma negação da idade da filha e exige que esta se comporte segundo os seus desejos, o que revela uma característica narcisista. Também pode ser considerado um mecanismo de defesa para aliviar a ansiedade escapando do pensamento realístico para comportamentos que, em anos anteriores, reduziram a ansiedade. No trecho: “Ernestina, moça feita, entrou radiante no primeiro baile. Foi uma revelação. D. Camila adorava a filha; saboreou-lhe a glória a tragos demorados. No fundo do copo achou a gota amarga e fez uma careta. Chegou a pensar na abdicação; mas um grande pródigo de frases feitas disse-lhe que ela parecia a irmã mais velha da filha, e o projeto desfez-se.” D. Camila também mostra sua sensibilidade para o belo e o orgulho de ter uma filha bonita. Tudo que o narcisista não quer é ser igual a todo o mundo. D. Camila ficou com medo de ter uma filha tão bela quanta ela, ou até mesmo mais bonita do que ela, mas depois para não admitir que estava envelhecendo passa a dizer que teve Ernestina muito nova. O sujeito narcisista é um sujeito de extrema ambição. Segundo Melanie Klein, desde o nascimento já existe um rudimento de ego capaz de experimentar a ansiedade, usar mecanismos de defesa e formar primitivas relações de objeto, tanto na fantasia como na realidade. Assim como Freud, ela afirma que desde o nascimento o bebê está exposto ao instinto de vida e morte. Explica a agressividade como a permanência do instinto de morte e no ego que não foi eliminada pelo processo de projeção.
No nono parágrafo em: “D. Camila viu iminente o primeiro neto, e determinou adiá-lo.” Fica evidente mais uma vez o sujeito (D. Camila) de extrema ambição, o narcisista tenta manipular a situação para que os seus desejos sejam atendidos (o de não envelhecer), ou seja, para D. Camila os seus desejos são mais importantes que os da filha.
No décimo terceiro parágrafo em: “Em que dose entrara neste grito o amor materno e o sentimento pessoal...” mostra mais uma vez a ausência de superego do sujeito narcisista.
No décimo quinto parágrafo: “Conseguiu achar umas cousinhas miúdas, tão somente a unha da imperfeição humana, alternativas de humor, aumento de graças intelectuais, e, finalmente uma grande excesso de amor-próprio.” D. Camila faz o uso da racionalização, ou seja. Utiliza motivos aceitáveis para explicar sua ação inaceitável de querer que a filha se case. È um modo de aceitar a pressão do superego.
No décimo sétimo parágrafo: “ Era de manhã, D. Camila estava ao espelho... Ela sentia em si a harmonia que ligava às cousas externas. Só a beleza intelectual é independente e superior. A beleza física é irmã da paisagem. D. Camila saboreava essa fraternidade íntima, secreta, um sentimento de identidade.” É possível relacionar esse trecho com o filme O retrato de Dorian Gray, de Oscar Wilde, onde ele mostra o reflexo no espelho como reflexo da alma verdadeira, que termina aparecendo por trás de todas as mais perfeitas aparências. Ele levanta a questão da imagem ideal, que se deseja ter diante do mundo, que Jung chamou de persona e as partes da personalidade que se deseja manter oculta, chamada mais tarde por Jung de sombra. Heinz Hartman define o ego como um sistema integrativo e adaptativo de funções hierarquicamente ordenadas. O ego seria um sistema de funções mentais e o Self estaria ligado aos sentimentos e experiências subjetivas. Distingue ainda o que é a representação do Self do próprio Self. A representação é a imagem que uma pessoa faz de si mesma, o que inclui representações conscientes, pré-conscientes e inconscientes do Self corporal e mental.
No mesmo parágrafo, na passagem: “Tinha visto, sobre a fonte esquerda, um cabelinho branco.” D. Camila fica totalmente frustrada ao saber que a velhice batera em sua porta. Annie Reich, explica esse fato ao dizer que algumas mulheres podem vir a desenvolver um vínculo narcísico de objeto com um ideal fálico, para restaurar a ferida da castração imaginária, e o sentimento de inferioridade. Rosenfeld defende que: “Ao lado de uma negação onipotente da realidade interna, existe uma profunda angústia de caráter esquizoparanóide.” A idealização é feita de forma que tudo parece magnificado. Como não se pode deter o tempo, o que sucede é o curso natural da vida de envelhecer e isso deixa D. Camila prostrada. A supervalorização do objeto é decorrente de um investimento narcísico.
No décimo nono parágrafo, no trecho: “Nunca a achou tão graciosa e lépida. Fitou-a com saudade. Fitou-a também com inveja, e, para abafar este sentimento mau, pegou o bilhete de camarote.” D. Camila começa a ter inveja da beleza da filha por esta se destacar tão graciosamente entre as pessoas. De acordo com Rosenfeld, a identificação é o fator mais marcante dessas relações, a relação narcísica é uma defesa contra a separação do Self e objeto; portanto, se dá o corte da percepção da separação para evitar os sentimentos de frustrações e dependência, bem como a inveja e os impulsos destrutivos. Rosenfeld enfatiza o papel da inveja no narcisismo destrutivo, apoiando a teoria desenvolvida por M. Klein de que a inveja é a expressão do instinto de morte. A pulsão de morte aqui se dirige tanto para os objetos quanto contra partes do Self.
Neste mesmo parágrafo: “... tornou a olhar para o espelho, e corajosamente arrancou o cabelinho branco... A velhice era um remorso...” Mais uma vez D. Camila nega a sua idade arrancando vestígios de sua idade já avançada. André Green afirma que no narcisismo corporal, o inimigo não são os outros, mas o próprio corpo. O corpo é limitação, servidão, finitude. O corpo é o outro, que tenta se afirmar apesar da tentativa de negá-lo.
No vigésimo parágrafo no trecho: “Ela aguardava o neto com amor e repugnância. Esse importuno embrião curioso da vida e pretensioso, era necessário na terra?” Um neto para D. Camila seria uma afronta, uma revelação de sua verdadeira identidade, por isso, só de pensar em ser avó ela já ficava furiosa. Essa “fúria narcísica”, nas palavras de Kohut, é motivada pela ameaça de dano narcísico. A fúria está a serviço de um Self grandioso arcaico e da percepção da realidade.
No último parágrafo: “Ela ia tão apertadinha, tão cuidadosa da criança... Antes parecia mãe do que avó; e muita gente pensava que era mãe.” Já na condição de avó, D. Camila começa a fazer passeios, acompanhada de uma preta, onde leva o pequeno e demonstra excessivos cuidados deixando transparecer que seria a mãe e não a avó da criança, ou seja, ela faz uma negação da identidade do neto. E mais uma vez, sua plateia faz projeções em relação a D. Camila ao fazer comparações como se ela fosse mãe da criança. É o que Winnicott chama de verdadeiro Self e falso Self. O falso é sempre o resultado de uma defesa, uma dissociação que tem a finalidade de ocultar o verdadeiro Self, para protegê-lo do aniquilamento. O falso Self tem no início esta função defensiva, mas pode vir a se cristalizar como se fosse a verdadeira pessoa.