Catraio

Tem dia que você acorda meio assim, meio sei lá. Hoje eu acordei querendo morrer, mesmo. Não por que essa segunda-feira é só mais um pontapé inicial de/para mais uma semana cheia de pontapés no meio do rabo, de desilusões que se acotovelam diante de seus olhos, lutando para ver qual será aquela que porá sua estima na mais sujismunda das sarjetas. Bom, talvez seja por isso mesmo a vontade de morrer. O lance de ter ciência e ser complacente com isso acentua e piora a situação, cria esse domo modorrento e intransponível de resignação e tédio. Nem tão intransponível assim, vai. Mas desgastante de ser transposto. Trespassado. Um dia reprisado da reprise da reprise da reprise. Deve ser só tédio. Não ter um abraço confortador pelo qual esperar no fim do dia agrava a situação. E são tantos braços disponíveis. Tantos abraços disponíveis. Dispensáveis. Às vezes penso que não caibo em abraço algum que não seja o da morte. E me contorço dentro dos braços alheios. Me contorço e boto as garras de fora, soltando grunhidos aborrecidos. Igual minhas gatas fazem quando as coloco no colo à força, exalando todo o amor que sinto por elas em choramingos, sussurros, solilóquios tatibitatescos, etc., e elas grunhem, se espicham, pulam, e correm, correm com a cauda pra lá e pra cá, impaciente, com vida própria. Queria ter uma cauda pra bater com força no chão. E já me falaram que eu sou um gato. Quis saber o porquê e o porquê me foi negado, mas suponho que seja por essa peculiar similaridade. Ou talvez porque eu caia dentro do meu próprio umbigo de vez em quando e fique com olhar apalermado, fitando o nada, meio morto-vivo, quase não piscando, em taciturno silêncio, completamente alheio ao que se sucede ao meu redor e dono de reações totalmente ariscas quando interrompido no processamento de meus pensamentos. As pessoas deveriam ir pra cadeira elétrica por não respeitarem o direito do próximo de se autoumbigar um pouco. Nem o despertador me deixa; terceira vez que toca. Essa trombeta do inferno em miniatura. Anunciando que tenho que sair da cama e ir viver um pouco. "Viver", quero dizer. Tomar banho, café, bonde. Dormitar em pé, sentado, escorado em alguém cujo rosto não vou lembrar dois segundos depois da última encarada. Apenas mais dois entre os dois milhões de pares de olhos que encaro diariamente. Não é por menos que tenho angústia de olhar nos olhos das pessoas, uma vontade sem fim de ir embora enquanto elas falam e me olham nos olhos. Como se zombassem de mim. Como se pudessem ver o que penso. Como se chupassem minha alma. Como se fossem velhas provincianas chupando o miolo de um osso atrás de caldo de tutano. "Acorde, catraio", berro a mim mesmo. Levantar e providenciar as provisões pro próximo dia. Não quero. Não quero. Não quero nem usar exclamação pra deixar superlativo o meu não-querer. Já aprendi desde pequeno que não tenho o que querer. Que minhas horas, que o decorrer das minhas horas deve ser como as águas de um moinho, escorrendo de acordo com o bel-prazer alheio. Mas, e essa anarquia dentro de mim a essa hora da manhã? Sou eu em essência ou sou eu um eu se rebelando contra mim-forjado? Levante, catraio! Chegará uma hora desse dia que provavelmente me verei a dez metros do chão, diante de uma multifuncional de cinqüenta quilos, com cem recibos em mãos pra xerocar, olhando as nuvens se aglomerando sob um céu azul de dar ânsia de vômito, sentindo um vento morno no rosto, digno de praia, e vou me perguntar: e isso lá é vida? Minha mão a meio caminho da bandeja do scanner, com uma folha entre os dedos, a máquina gemendo, o vento soprando, as buzinas subindo dez metros da rua até mim: e isso lá é vida? A outra impressora cuspindo uma folha atrás da outra e quem as imprimiu coçando o cu e mentalmente arranjando meios de ser filha da puta comigo: isso lá é vida? E a folha continuará entre meus dedos, a meio caminho do scanner, e eu sentirei uma pontadinhazinha de angústia. Apenas, apenas isso: uma pontadinhazinha. Talvez me olhe no vidro espelhado e descubra de onde vem tanta incapacidade de sentir, de amar, de ser sincero com alguém que valha sinceridade. Talvez bata aquele desespero, aquele sentir da alma se chacoalhando dentro do corpo, melindrosa porque percebeu a idéia que se instalou na minha cabeça feito bala perdida. Morrer, morrer, morrer, morrer. Bom, maldição, essa é a hora de um copo d'água. Organizar a desordem mental. Tentar ativar algum hormônio placebo que invente que viver é maravilhoso e é isso mesmo. Aceitar que viver numa época em que a guerra é contra si próprio é bonito, uma bênção. Aceitar que a mancomunação de picuinhas laborais é o ápice da nossa contemporaneidade. Ah, lembrei. Sonhei com uma portuguesa que conheci. Redundante dizer que ela é linda? Ela é. O português de Portugal é bem mais bonito que o nosso. O sonho? Não me lembro muito bem... Era um clichê cult, pelo pouco que me lembro: waffles e xícaras de café na beira de um lago, livros displicentemente largados ao canto da mesa com a capa pra cima. Grilos cricrilando em nossa homenagem. Não havia flerte, era algo meio idílico, intangível, sabe? Assim como um sonho o é. Um sonho dentro de um sonho. Não é por menos que eu acorde querendo morrer: essa ruptura abrupta da tênue linha entre uma realidade insossa e um sonho recheado de feliz fulgor. Estou atrasado, devo levantar. Caraio, catraio, levanta! Queria de repente ser amarrado à cama por pessoas mascaradas com seringas em riste; agulhas esguichando algum indutor de coma, introjetadas no meu corpo, destilando o veneno no meu organismo e eu me esvaindo todinho em deletério, resvalando para um sono calmo, ataráxico; porra nenhuma. Daqui, com as pernas espichadas pra fora do cobertor, consigo me projetar daqui doze horas: só a casca da lagarta, destituído de tudo quanto é desejo que não abranja o(s) ato(s) de deitar, coçar o cu, rolar pro lado, peidar e dormir. É, é sim. Imbuído da mais profunda tristeza autocomiserativa, voltarei pra casa de ombros derreados - mas ainda assim olhando o céu. Porque talvez do céu venha algo - mesmo que uma resposta - que acabe com tudo ou que dê início a algo de verdade, algo que seja menos esquete do que essa realidade besta o é... Ou tem sido. Não sei. Estou fora do tempo, do compasso, da música... Humpf. De mim. De mim, catraio, catraio que levanta cedo para sentir progressivos desentusiasmos em levantar. Levante, catraio. O vazio te espera lá fora. Ansioso pra baforar monóxido de carbono direto nos seus pulmões. Ansioso para de dar as costas.

Legião Urbana - Há Tempos

04/03/2013 - 19h20m

Rafael P Abreu
Enviado por Rafael P Abreu em 04/03/2013
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