A HISTÓRIA SEM FIM DE TATIANA E DANIEL
Conheci “seu” Henrique quando fazia minhas caminhadas pelo Parcão nos idos dos anos noventa. Ele sentava em um dos bancos da área próxima à Av. Mostardeiro, abrigado do sol e, invariavelmente, tinha nas mãos um livro com capa antiga de um título clássico da literatura universal. Quando cruzávamos os olhos, ele me fazia um leve aceno de cabeça, interpretado como um sinal de reconhecimento, pelas tantas vezes que nos deparamos naquele lugar.
Num desses encontros, era fim de outubro e recém se iniciara o horário de verão. Quando terminei a caminhada, ainda estava claro e “seu” Henrique permanecia no banco habitual, absorvido em sua leitura. Sentei-me ao lado dele e arrisquei o primeiro contato verbal.
-“Incidente em Antares”, Érico Verissimo. Todos deveriam começar a ler Érico por este romance, disse ao ver o livro que ele tinha nas mãos.
Ele suspendeu a leitura e me olhou, num demorado silêncio.
- Érico, o romancista maravilhoso que se auto-intitulava um mero “contador de estórias”, finalmente disse-me e emendou: eu sou um contador de estórias. Érico era um gênio.
- Concordo com a referência a Érico, mas não tenho como saber acerca da outra afirmativa.
Ele se mexeu no banco, como satisfeito pela frase que ouviu e, tocando-me com a mão no joelho, suspirou fundo e arrematou:
- Tenho muitas coisas a contar. Umas são estórias, outras são histórias. Algumas me contaram, outras fui testemunha. Aqui neste mesmo parque presenciei uma história que nunca contei a alguém.
Percebi que era uma deixa para que eu demonstrasse interesse em ouvir a história que ele tinha a contar. Entrei no jogo, até porque tinha tempo de sobra antes do encontro com os amigos no bar costumeiro. Disse-lhe que queria ouvir.
Os olhos dele brilharam. Dobrou o canto da página aberta do livro, fechou-o e colocou-o delicadamente sobre o banco da praça. Espichou o olhar para o infinito e, como se estivesse a consultar a memória, começou a contar-me a história de Tatiana e Daniel.
Ambos tinham oito anos e haviam se mudado do interior para Porto Alegre. Daniel um ano antes de Tatiana. Foram morar no mesmo bairro, Moinhos de Vento, próximo ao Parcão.
- Daniel, disse-me “seu” Henrique, era um menino espontâneo e muito sensível. Muitas vezes, prosseguiu, conversamos sobre coisas que, para mim, estavam muito além da compreensão de um menino de oito anos. Entre uma volta e outra de bicicleta pelo parque, ele sentava ao meu lado e perguntava sobre os livros que eu estava lendo. Quando conheceu Tatiana, trazida ao parque pela mãe viúva, confidenciou-me que gostava muito dela. Com o passar do tempo, ela se transformou em seu assunto principal nas nossas conversas.
Daniel era figura popular no parque. Convivia com vários amigos, era sempre procurado para participar das brincadeiras.
Tatiana tinha um brilho especial, cabelos castanhos claros discretamente encaracolados nas extremidades. Atraía pelos olhos intensos, também castanhos claros, mas com uma expressão marcante, profunda, cativante. Ficaram muito amigos, Tatiana e Daniel. Nos dias de freqüentar o parque, andavam sempre juntos.
Daniel me contou, lembra “seu” Henrique, que, num determinado dia, Tatiana apresentou a ele sua mascote preferida, um urso de pelúcia, que, segundo ela, tinha poderes especiais. Ao apresentar a mascote, Tatiana revelou a Daniel seu medo de que alguém descobrisse os segredos existentes entre ela e o ursinho, o que poderia acontecer num toque, em sequência: no nariz e no umbigo da mascote. Tatiana fez Daniel prometer que jamais revelaria a senha de acesso aos poderes do ursinho. Em troca, disse-me, contei a ela sobre minha ida ao shopping que eu visitara no sábado. “Ficou maravilhada com meu relato e disse que gostaria de ir lá também. Prometi a ela que a levaria comigo na próxima visita.”
Dias depois, Tatiana deixou o ursinho no banco onde eu estava sentado, lendo “Guerra e Paz” e saiu a passear pelo parque com a bicicleta, conta “seu” Henrique. Em seguida, chegou Daniel e, vendo o ursinho sobre o banco, confidenciou-me:
-“ Duvido que o ursinho tenha poderes”. E, antes que eu pudesse impedir-lo, tocou o nariz e a barriga da mascote. Nada aconteceu. “Tatiana me mentiu”, balbuciou.
Quando Tatiana estacionou a bicicleta perto de mim ( conta “seu” Henrique), Daniel, ainda transtornado, questionou-a, dizendo que o ursinho não tinha qualquer poder.
Tatiana fuzilou-o com o olhar, tomou-lhe o urso das mãos e acelerou a bicicleta em direção à mãe, sentada perto do lago.
Depois desse dia, Tatiana passou semanas sem aparecer no parque. Daniel mostrava-se arrasado. Sentado aí onde estás, demonstrava toda a tristeza e o arrependimento pelo que fizera. Temia perdê-la e, muitas vezes, percebi discretas lágrimas umedecendo os olhos azuis dele.
Nessa altura da narrativa percebi que acendiam-se as luzes do parque e dei-me conta que precisava ir embora. Disse-o ao "seu" Henrique e combinei que voltaria no dia seguinte para ouvir o final da história. Ele, naquele jeito manso e compreensivo, acenou com a cabeça e, com a mão no meu ombro, me disse: tá certo, nunca as histórias acabam porque demoram a ser contadas.
No dia seguinte, apressei-me em resolver todos os compromissos que tinha para chegar mais cedo ao parque. Até a caminhada foi mais rápida e mais curta do que o usual. Fui até o banco de onde sempre estava "seu" Henrique, absorvido pela leitura do "Guerra e Paz".
Mais ou menos um mês depois, começou ele, Tatiana voltou ao parque. Daniel jogava futebol quando enxergou-a chegando na bicicleta. Num primeiro momento ficou parado, olhando o movimento da menina e esquecendo o jogo. Quando lhe gritaram "É tua, Daniel", nada fez. A atenção dele era toda para Tatiana. Parou de jogar e veio sentar ao meu lado. Confessou-me que gostaria muito de falar com ela e pedir perdão pelo que fizera, mas tinha medo que ela não o quisesse ouvir, ou que o tratasse muito mal. Dentro dele travava-se uma luta titânica, uma confusão de sentimentos, a viagem tenebrosa entre o céu e o inferno no coração ingênuo de um menino de oito anos. A eterna luta entre o bem e o mal, a culpa e a redenção, a acusação e o perdão. A dialética dos grandes pensadores colocada no coração de um menino. Era esse menino que estava ali na minha frente, com os olhos suplicando uma resposta. Eu não tinha uma resposta. Perguntei-lhe o que dizia aquele coração aflito e ele me respondeu que precisava falar com ela e explicar o que estava sentindo, que estava arrependido e que gostaria de ser amigo dela de novo. Então, porque não faz isso, perguntei a ele. "Acha que ela aceitaria?" Não sei, mas não custa nada tentar, disse-lhe. Para minha surpresa, vi-o levantar decidido do banco e ir em direção a ela, que conversava com um menino, também apoiado numa bicicleta.
Pouco depois, ele voltou cabisbaixo e sentou ao meu lado, continuou "seu" Henrique. Ficamos calados por um bom tempo. Dei-lhe o tempo que precisava. Quando me olhou, uma lágrima corria de um triste olho, à direita da face. "Ela me disse que não queria brincar comigo. Tinha agora um novo amigo e eles iriam juntos no shopping no próximo sábado." Respeitei o momento dele e nada falei, apenas segurei com delicadeza a mão trêmula, que acompanhava o peito ofegante e as lágrimas que, enfim, haviam se libertado. Não sei quanto tempo ficamos ali, olhando a tarde se esconder por trás dos edifícios da Mostardeiro.
Quando "seu" Henrique falou sobre isso, ocorreu-me de olhar em volta. Mais uma vez já se haviam acendido as luzes do parque e eu precisava ir embora. "E o resto amanhã?", perguntei.
Em resposta, apenas o conhecido aceno de cabeça. Percebi que estávamos ambos constrangidos. Parti em silêncio, para nada fazer naquela noite. No quarto em desordem do meu coração, algumas coisas precisavam de cuidado.
Quase não dormi naquela noite e os poucos momentos de sono foram povoados de pesadelos. Demônios cravavam garras em minhas costas; todas as pessoas que amava embarcavam num trem cercado de nuvens que sumia numa curva próxima à estação; dedos acusadores postados sobre meu nariz doíam mais do que meus joelhos apoiados sobre os grãos de milho espalhados no chão do canto da sala de aula.
Acordei com o corpo todo dolorido, um aperto ácido num local obscuro onde deveriam estar meu coração e meu estômago. A cabeça girava e era sábado. Era dia de não ir ao Parcão.
Não fui.
Estranhei quando, na segunda-feira, não encontrei "seu" Henrique sentado no banco habitual. Fiz toda a caminhada e ele não apareceu.
Pelos três meses seguintes fui caminhar no Parcão, na esperança de encontrar "seu" Henrique. Ele não mais apareceu. Não sei o que ocorreu com ele e nem sei como terminou a história de Tatiana e Daniel. Só sei que, dentro de mim, essa história nunca terminou.
Conheci “seu” Henrique quando fazia minhas caminhadas pelo Parcão nos idos dos anos noventa. Ele sentava em um dos bancos da área próxima à Av. Mostardeiro, abrigado do sol e, invariavelmente, tinha nas mãos um livro com capa antiga de um título clássico da literatura universal. Quando cruzávamos os olhos, ele me fazia um leve aceno de cabeça, interpretado como um sinal de reconhecimento, pelas tantas vezes que nos deparamos naquele lugar.
Num desses encontros, era fim de outubro e recém se iniciara o horário de verão. Quando terminei a caminhada, ainda estava claro e “seu” Henrique permanecia no banco habitual, absorvido em sua leitura. Sentei-me ao lado dele e arrisquei o primeiro contato verbal.
-“Incidente em Antares”, Érico Verissimo. Todos deveriam começar a ler Érico por este romance, disse ao ver o livro que ele tinha nas mãos.
Ele suspendeu a leitura e me olhou, num demorado silêncio.
- Érico, o romancista maravilhoso que se auto-intitulava um mero “contador de estórias”, finalmente disse-me e emendou: eu sou um contador de estórias. Érico era um gênio.
- Concordo com a referência a Érico, mas não tenho como saber acerca da outra afirmativa.
Ele se mexeu no banco, como satisfeito pela frase que ouviu e, tocando-me com a mão no joelho, suspirou fundo e arrematou:
- Tenho muitas coisas a contar. Umas são estórias, outras são histórias. Algumas me contaram, outras fui testemunha. Aqui neste mesmo parque presenciei uma história que nunca contei a alguém.
Percebi que era uma deixa para que eu demonstrasse interesse em ouvir a história que ele tinha a contar. Entrei no jogo, até porque tinha tempo de sobra antes do encontro com os amigos no bar costumeiro. Disse-lhe que queria ouvir.
Os olhos dele brilharam. Dobrou o canto da página aberta do livro, fechou-o e colocou-o delicadamente sobre o banco da praça. Espichou o olhar para o infinito e, como se estivesse a consultar a memória, começou a contar-me a história de Tatiana e Daniel.
Ambos tinham oito anos e haviam se mudado do interior para Porto Alegre. Daniel um ano antes de Tatiana. Foram morar no mesmo bairro, Moinhos de Vento, próximo ao Parcão.
- Daniel, disse-me “seu” Henrique, era um menino espontâneo e muito sensível. Muitas vezes, prosseguiu, conversamos sobre coisas que, para mim, estavam muito além da compreensão de um menino de oito anos. Entre uma volta e outra de bicicleta pelo parque, ele sentava ao meu lado e perguntava sobre os livros que eu estava lendo. Quando conheceu Tatiana, trazida ao parque pela mãe viúva, confidenciou-me que gostava muito dela. Com o passar do tempo, ela se transformou em seu assunto principal nas nossas conversas.
Daniel era figura popular no parque. Convivia com vários amigos, era sempre procurado para participar das brincadeiras.
Tatiana tinha um brilho especial, cabelos castanhos claros discretamente encaracolados nas extremidades. Atraía pelos olhos intensos, também castanhos claros, mas com uma expressão marcante, profunda, cativante. Ficaram muito amigos, Tatiana e Daniel. Nos dias de freqüentar o parque, andavam sempre juntos.
Daniel me contou, lembra “seu” Henrique, que, num determinado dia, Tatiana apresentou a ele sua mascote preferida, um urso de pelúcia, que, segundo ela, tinha poderes especiais. Ao apresentar a mascote, Tatiana revelou a Daniel seu medo de que alguém descobrisse os segredos existentes entre ela e o ursinho, o que poderia acontecer num toque, em sequência: no nariz e no umbigo da mascote. Tatiana fez Daniel prometer que jamais revelaria a senha de acesso aos poderes do ursinho. Em troca, disse-me, contei a ela sobre minha ida ao shopping que eu visitara no sábado. “Ficou maravilhada com meu relato e disse que gostaria de ir lá também. Prometi a ela que a levaria comigo na próxima visita.”
Dias depois, Tatiana deixou o ursinho no banco onde eu estava sentado, lendo “Guerra e Paz” e saiu a passear pelo parque com a bicicleta, conta “seu” Henrique. Em seguida, chegou Daniel e, vendo o ursinho sobre o banco, confidenciou-me:
-“ Duvido que o ursinho tenha poderes”. E, antes que eu pudesse impedir-lo, tocou o nariz e a barriga da mascote. Nada aconteceu. “Tatiana me mentiu”, balbuciou.
Quando Tatiana estacionou a bicicleta perto de mim ( conta “seu” Henrique), Daniel, ainda transtornado, questionou-a, dizendo que o ursinho não tinha qualquer poder.
Tatiana fuzilou-o com o olhar, tomou-lhe o urso das mãos e acelerou a bicicleta em direção à mãe, sentada perto do lago.
Depois desse dia, Tatiana passou semanas sem aparecer no parque. Daniel mostrava-se arrasado. Sentado aí onde estás, demonstrava toda a tristeza e o arrependimento pelo que fizera. Temia perdê-la e, muitas vezes, percebi discretas lágrimas umedecendo os olhos azuis dele.
Nessa altura da narrativa percebi que acendiam-se as luzes do parque e dei-me conta que precisava ir embora. Disse-o ao "seu" Henrique e combinei que voltaria no dia seguinte para ouvir o final da história. Ele, naquele jeito manso e compreensivo, acenou com a cabeça e, com a mão no meu ombro, me disse: tá certo, nunca as histórias acabam porque demoram a ser contadas.
No dia seguinte, apressei-me em resolver todos os compromissos que tinha para chegar mais cedo ao parque. Até a caminhada foi mais rápida e mais curta do que o usual. Fui até o banco de onde sempre estava "seu" Henrique, absorvido pela leitura do "Guerra e Paz".
Mais ou menos um mês depois, começou ele, Tatiana voltou ao parque. Daniel jogava futebol quando enxergou-a chegando na bicicleta. Num primeiro momento ficou parado, olhando o movimento da menina e esquecendo o jogo. Quando lhe gritaram "É tua, Daniel", nada fez. A atenção dele era toda para Tatiana. Parou de jogar e veio sentar ao meu lado. Confessou-me que gostaria muito de falar com ela e pedir perdão pelo que fizera, mas tinha medo que ela não o quisesse ouvir, ou que o tratasse muito mal. Dentro dele travava-se uma luta titânica, uma confusão de sentimentos, a viagem tenebrosa entre o céu e o inferno no coração ingênuo de um menino de oito anos. A eterna luta entre o bem e o mal, a culpa e a redenção, a acusação e o perdão. A dialética dos grandes pensadores colocada no coração de um menino. Era esse menino que estava ali na minha frente, com os olhos suplicando uma resposta. Eu não tinha uma resposta. Perguntei-lhe o que dizia aquele coração aflito e ele me respondeu que precisava falar com ela e explicar o que estava sentindo, que estava arrependido e que gostaria de ser amigo dela de novo. Então, porque não faz isso, perguntei a ele. "Acha que ela aceitaria?" Não sei, mas não custa nada tentar, disse-lhe. Para minha surpresa, vi-o levantar decidido do banco e ir em direção a ela, que conversava com um menino, também apoiado numa bicicleta.
Pouco depois, ele voltou cabisbaixo e sentou ao meu lado, continuou "seu" Henrique. Ficamos calados por um bom tempo. Dei-lhe o tempo que precisava. Quando me olhou, uma lágrima corria de um triste olho, à direita da face. "Ela me disse que não queria brincar comigo. Tinha agora um novo amigo e eles iriam juntos no shopping no próximo sábado." Respeitei o momento dele e nada falei, apenas segurei com delicadeza a mão trêmula, que acompanhava o peito ofegante e as lágrimas que, enfim, haviam se libertado. Não sei quanto tempo ficamos ali, olhando a tarde se esconder por trás dos edifícios da Mostardeiro.
Quando "seu" Henrique falou sobre isso, ocorreu-me de olhar em volta. Mais uma vez já se haviam acendido as luzes do parque e eu precisava ir embora. "E o resto amanhã?", perguntei.
Em resposta, apenas o conhecido aceno de cabeça. Percebi que estávamos ambos constrangidos. Parti em silêncio, para nada fazer naquela noite. No quarto em desordem do meu coração, algumas coisas precisavam de cuidado.
Quase não dormi naquela noite e os poucos momentos de sono foram povoados de pesadelos. Demônios cravavam garras em minhas costas; todas as pessoas que amava embarcavam num trem cercado de nuvens que sumia numa curva próxima à estação; dedos acusadores postados sobre meu nariz doíam mais do que meus joelhos apoiados sobre os grãos de milho espalhados no chão do canto da sala de aula.
Acordei com o corpo todo dolorido, um aperto ácido num local obscuro onde deveriam estar meu coração e meu estômago. A cabeça girava e era sábado. Era dia de não ir ao Parcão.
Não fui.
Estranhei quando, na segunda-feira, não encontrei "seu" Henrique sentado no banco habitual. Fiz toda a caminhada e ele não apareceu.
Pelos três meses seguintes fui caminhar no Parcão, na esperança de encontrar "seu" Henrique. Ele não mais apareceu. Não sei o que ocorreu com ele e nem sei como terminou a história de Tatiana e Daniel. Só sei que, dentro de mim, essa história nunca terminou.