O Féretro e o Poeta.
Querida alma, com louvores este meu corpo te escreve, entusiasmado com os sonhos duma encarnação. Sei que sonhei, sem me restarem lembranças. Há um féretro que contém um corpo desalmado que antes tanto chorou para não ir embora para lugar incerto, tão cheio de bruma e obscurantismo. Eis que te dou “poema de vida” feito por um outro corpo ainda cheio de alma: faz-me esse outro como o meu, para que não me reste, ao ouvir a minha voz, saber que há nessa cidade apenas um poeta velho. Meus versos são loucos pelos versos do poeta morto. Se apenas restar-me a desesperança, lerei para o outro corpo que ainda festeja nessa sala de choros, não como as carpideiras, mas um declamador; a alma que, deixando o corpo, ainda se segura no cerco do luto dos parentes, bem que me ouvirá ela, declamando os versos que fez, por mim tão admirados.
Quero falar contigo, alma sem corpo; para isso empresto-te o meu.
Não me deixes louco, alma sem boca, silenciada frente à minha dor; esse poeta que morreu, saibas, era o meu grande amor: fazíamos versos engraçados e eu sorria para assim alegrar-te, ó alma desgarrada, para quem agora falo quase morto também. Alma contra alma se pede. O féretro não pode guardar poemas de amor porque já nasceu triste e isolado, para mais ainda isolar-se no fundo de uma sepultura esquisita, onde os vermes habitam, sem possuir as palavras.
Eis meu primeiro verso:
Alma de algodão,
ó leve duma bendita,
mortos, teus versos não gritam,
tua boca morreu.
Lembrei-me que possuem um livro de poemas que ele editou. Nada morreu do que ficou, mas eu indago: e os que ainda estavam sendo pensados? Estão frios, desacumulados; nem sobejo de rima há neles; então eu sei que morreram versos, e onde estão? Vou procurar o lugar onde os poetas mortos enterram seus versos, os que não conseguem publicar.
Choravam vozes – o único vozeirão era mesmo o dos meus versos –, menores do que a minha solitária, triste, refutando o luto, querendo readquirir a poesia do que ainda não havia sido lido por ninguém; estava apenas com a alma fugidia – antes de um corpo que sonhava, sonhava, sonhava...
Chegado o padre, quis declamar, lembrou as coisas da alma e pouco olhou para o corpo frio. Alguns irrequietos se entreolharam, xingavam o calor e, disfarçadamente, olhavam para o relógio.
Ó alma impiedosa – a que chamo ou uma outra que porventura me ouça – traz-me a alma dos versos, os versos da alma: tudo! É apenas perto de meu corpo que esse outro corpo chora, ri e goza, se tua alma novamente chegar a ouvir-me declamando.
A noite se perdeu no escuro desluarado. As tristes estrelas do céu foram embora também, só suas lágrimas candentes choravam para se ver outros menos tristes que eu, que nem mais choravam. Declamei meu grande estoque de versos decorados à espera que a alma voltasse – tarde era, e escuro – e ela não me veio poetar.
Quando o orvalho já havia chorado na terra, o sol declamou o primeiro verso do dia. A vela ao lado do féretro mudo, bruxuleava quase finda. Nas faces das raras pessoas que ali estavam, não se viam nem as marcas dos caminhos das lágrimas.
Dou-te, ó alma sumida, um segundo verso triste, quase desesperançado: pois o sol que sobe a arder lá, quase no fim deste horizonte, fala-me de uma hora triste: a triste hora em que os que não têm mais, enterram os que nada são, os mortos. Lembrei-me do estrume que os corpos viram, temperados pelos besouros da terra que vivem nas profundezas escuras das valas de tristeza.
Ó alma ingrata, volta para este corpo tão frio que nos deixou tanto sofrimento! Para que serve a um féretro guardar um corpo de um poeta mudo que não mais viverá?
Ó alma impiedosa, donde és? Ingratidão não declama – a poesia é a voz da vida – dá-me outra vez viver, ouvindo dessa boca surda seus versos que tanto me falavam, tanto me diziam.
O sol alto queimava minha fronte e agora, de lábios secos, voz guardada em um nó na garganta, levaram o féretro escuro, abafando o corpo do poeta, para o buraco cruel em que ponho o ponto final no soletrar da morte.
-Quem morreu?
-Um poeta!
-O que fazia ele em vida?
-Escondia-se de você, ó burro desvalido – inseto da vergonha, alma da escória do mundo.
-Eu sou apenas um coveiro. Apenas um coveiro...Nada mais disso que o senhor acabou de falar.
Passei a fazer versos novos e lembrar-me dos versos dele. A estrela havia se apagado cedo – meu amor morreu de sede de amor, encontrou a morte e se foi para onde não acham mais os que versejam. Cá me ficaram dois livros finos, desbotados já, como se quisessem morrer também de desgosto.
Olhei para trás ainda quando os portões do cemitério se fechavam. O homenzarrão achou o olhar triste dos meus versos que também possuíam olhos. Levantou-me a mão direita, acenou descabidamennte, porque eu lhe havia dito fortes palavras; disse-me:
Não fique triste. O poeta que morreu não morrerá mais. Tenho um velho jornal do ano passado que me fala dele. Agora me lembrei: era Mundano Castigo: não podia viver para sempre.
Levantei-lhe a mão sem conseguir mostrar a voz; triste e trêmulo, além de envergonhar-me, apressei meus passos. Fui embora fazer meus versos para a vida. O coveiro nunca mais saiu de minhas ideias, apenas da frente dos meus olhos. Quem sabe não sou eu um féretro que nunca soube disfarçar a morte que carrega de olhos marejados, voz triste, olho descuidado a não ler os maiores versos da vida? Ó cemitério, o que guardas além do corpo e do féretro? Até quando hás de ser assim, desse jeito, sem saber fazer versos? Perdi um grande amor, mas um luto passa. Não : pô-lo-ei em meus versos tristes, para nunca deixar de amá-lo. Serei doravante um poeta- féretro, guardador de versos alheios para minha maior felicidade