Que bela sova!
Os sacuês (galinhas-d´angola) caíram estatelados! Não suportaram o leve peteleco na crista. Tudo aconteceu igualzinho à história contada pelos clientes na bodega de seu pai.
Um belo dia Vavo estava tomando conta do pequeno comércio de seu genitor. Na frente do balcão vários clientes formavam uma mesa-redonda de desocupados. Estes, entre uma pinga e outra, contavam piadas e muitas lorotas. Algumas do arco da velha! No auge daquela sessão de entretenimento, Claudino - o mais velho do grupo habituado a falar minto e retomar a mesma piada desde o início tintim por tintim se no decorrer da narrativa esquecesse uma só palavra - interrogou os demais:
- Vocês sabem por que o sacuê canta to fraco, to fraco, to fraco? - todos menearam a cabeça em sinal de desconhecimento.
- É porque ele é fraco mesmo. Qualquer pancadinha dada pela gente com uma vareta na crista do danado, ele cai durinho que é uma beleza!
Vavo, que se fazendo de mouco a tudo ouvia - mesmo porque uma criança de nove anos jamais poderia dar pitaco em conversa de adultos sem ser severamente admoestada, às vezes até com agressões do tipo: - menino e cachorro fora –, sentiu-se tocado pela mosca azul e começou a maquinar intimamente o plano a ser posto em prática.
- Em casa mamãe já possui a matéria-prima para minhas futuras diabruras – pensou o moleque.
Todos os dias religiosamente às seis da manhã, dona Cana levantava do seu leito para alimentar o rebanho galináceo, constituído de galinhas, perus e sacuês.
Ao deixar a bodega naquele dia, ele foi até sua casa, apanhou uma faca e caiu no mato à procura da arma de sua próxima traquinagem. Cortou uma vareta nos moldes da descrita por Claudino aos amigos e, aproveitando a mãe absorta na cozinha nos preparativos do almoço, entrou todo songamonga rumando direto para o quarto. Debaixo do colchão, escondeu a arma de guerra com a qual esperava fazer algumas vítimas.
À noite quase não dormiu pensando na sórdida travessura planejada para o alvorecer do dia seguinte. Às cinco e meia da matina, antes que sua mãe, seu pai ou qualquer dos quatro irmãos acordasse, levantou e foi à despensa. Encheu uma pequena gamela de milho, dirigiu-se ao terreiro e, imitando bem baixinho o chamamento das aves, como sua mãe habitualmente fazia, começou a jogar o alimento para o rebanho.
– Ti, ti, ti... Ti, ti, ti... Ti, ti, ti... E, à medida que jogava o milho, as aves se aproximavam aos montes enchendo gulosamente o papo. O terreiro ficou apinhado delas.
Dos preparativos para a ação propriamente dita foi um pulo. De posse da vareta ele jogava a ração. O sacuê (bicho desconfiadíssimo) à custo se apresentava. E ele, de vareta em punho... Peteleco na crista! E lá vai um! Tome milho e... Peteleco! E cai mais outro! O ritual continuou até a nona ave ter se estrebuchado moribunda. Satisfeito com sua empreitada macabra, era chegada a hora de limpar o local do crime. Pegou os sacuês pelos pés e os jogou no porão, debaixo do soalho da casa, voltando na maior sonsidão como se nada tivesse acontecido, para o bem-bom do aconchego de sua cama patente.
- Santa ingenuidade essa minha! Bem que eu poderia ter escolhido local melhor para camuflar as aves. No interior do sítio há bastante lugar para escondê-las sem que mamãe possa encontrá-las. Os culpados pelas mortes seriam os cachorros, as cobras ou os gatos-do-mato. Ao invés disso, cometi a imprudência de deixá-las debaixo do soalho – pensava enquanto rolava na cama sem sono. Agora que mamãe já está acordada nada mais posso fazer. É aguardar para ver no que vai dar.
É como diz aquela máxima jurídica: “Não existe crime perfeito”.
No horário habitual dona Cana acordou e seguiu a rotina de sempre. Foi à despensa, encheu a pequena gamela de milho e se dirigiu para o terreiro, a fim de alimentar as suas aves.
– Ti, ti, ti... Ti, ti, ti... Ti, ti, ti... Logo percebeu a falta de uma boa quantidade de sacuês, mas pensou que eles estivessem à cata de alimentos na área do sítio. Enganou-se redondamente!.
Como fazia todos os dias ela foi até o porão debaixo do soalho supervisionar as galinhas que estavam chocando e recolher os ovos ali deixados pelas poedeiras. Ao se deparar com suas aves de estimação mortas, não conteve a indignação e, espumando de tanta raiva, trouxe-as para o terreiro segurando-as pelas pernas. Chamou os cinco filhos, colocou-os perfilados à sua frente - por ordem de altura como se fosse uma formação militar - e, com o relho de sola crua em uma das mãos começou a inquiri-los, iniciando pelo mais velho:
– Foi você Mi, o autor de tamanha maldade?
– Não fui eu não mãe - afirmou.
Como o moleque ficou verde de medo de levar chicotadas com aquele relho, seu mano Vavo adiantou-se a acusá-lo impiedosamente.
– Foi ele minha mãe! Olha como ele está verde de medo!
- Chorando, copiosamente, Mi jurou por tudo o de mais sagrado que não havia cometido aquele ato bestial.
Dona Cana dirigiu a pergunta a todos os demais filhos.
- Foi você Ivo?
- Não mãe – respondeu com bastante firmeza.
– Foi você Vavo?
- Não mãe.
– Foi você Dado?
– Não mãe.
- E você Vando?
- Não mãe.
Como não conseguiu a confissão de culpa de nenhum deles ela usou a velha tática do “já que não foi ninguém, por um todos pagam”. E foi lançando mão do mano Mi para arriar-lhe o relho sem dó nem pena.
Como quem deve teme, Vavo, o acusador do mano Mi, debandou a correr sítio afora, denunciando-se como sendo o autor daquela macabra empreitada. Perseguido pelos demais irmãos conseguiu desvencilhar-se e se esconder dentro do oco de um grande tronco de jatobá caído no interior do sítio, lá permanecendo escondido o restante do dia.
Dona Cana já estava desesperada com o sumiço do endiabrado Vavo, haja vista o avizinhar do lusco-fusco vespertino, quando ele surgiu todo faceiro e cheio de artimanhas anunciando que havia muitos cachos de banana maduros no interior do sítio. Ela, ardilosamente, fingiu ter passado a esponja no acontecido e convidou o traquina a entrar para tomar banho, se alimentar - ele estava sem comer o dia todo - e ficou de colher no dia seguinte as frutas maduras por ele avistadas.
Convite aceito, mas com certa dose de reserva. O peralta entrou, tirou a roupa e, com um olho no padre o outro na missa, dirigiu-se ao banheiro - um tanque de quatro metros quadrados de área, um metro de profundidade, todo revestido de cimento alisado. Deu o primeiro mergulho na água e, rapidamente, virou-se para o corredor a fim de tomar pé da situação. Logo descobriu cheiro de trairagem no ar. Dona Cana se aproximava sorrateiramente, com o relho para surpreendê-lo e fazê-lo pagar pela crueldade praticada contra suas aves.
- Pernas pra que te quero! – Foi o que pensou o traquina. Imediatamente tentou ganhar o mundo novamente, através da porta do banheiro, com acesso ao terreiro. Porém, desta feita, não foi feliz porque o tio Louro já estava mancomunado com dona Cana e o apanhou em pleno vôo. A mãe lhe aplicou uma bela sova naquele corpo nu e indefeso, jogando-o em seguida dentro do tanque de água fria.
- Bem feito seu moleque perverso! - bradou o mano Mi, recompensado depois da acusação a ele infligida por Vavo. Nunca mais você vai praticar essas malvadezas e sair por aí botando a culpa nos outros!- passou-lhe uma reprimenda com toda autoridade de irmão mais velho.
Mi recebeu irrestrita manifestação de solidariedade dos outros três manos. Todos também satisfeitos com a sova tomada pelo traquina.
Desse dia em diante os sacuês e as demais aves, passaram a ter vida longa no sítio de dona Cana.