A LAVADEIRA

Era uma aluna ausente, afirmavam os professores em unanimidade a cada reunião. Apenas a bibliotecária a via quinzenalmente, na entrega e empréstimo de livros, os fazia e saía correndo como se tivesse atrasada para a vida. Já mandaram chamar a mãe para conversar com a gestão escolar, mas esta faz-se ainda mais ausente que a filha. Por tratar-se de uma criança menor de idade, apenas 11 anos, a escola resolveu comunicar as faltas aos órgãos superiores.

Era uma escola ruim, a única do bairro, nunca tinha aula, ou sempre largava muito cedo. Aquela mãe, que passava seus dias à beira de um tanque, com suas mãos grossas a lavar as roupas finas das madames, não tinha tempo para procurar saber o porquê de tamanha negligência escolar. No seu ofício, tempo era... não... o pouco que ganhava não poderia ser chamado de “ouro”, mas tempo era o pão para ela e principalmente para sua Raquel, a esperança de dias mais leves. Nunca recebera convite de comparecimento à escola. E a hora que perderia só caminhando para ir e vir do colégio faria falta na feira do mês.

Raquel sempre fora uma filha adorável, daquelas raras, obediente, amorosa, grudada à mãe todo tempo. Uma criança que nunca fazia perguntas difíceis a essa senhora de 48 anos com medo de entristecê-la. Algumas noites, questionava às estrelas quem seria o seu pai, por onde andaria, como seria o rosto dele... as estrelas a contemplavam caladas, e seu brilho era lido como: “não importa, menina, tua mãe já é tudo”. E Raquel corria para dentro de casa para abraçar seu anjo. Era uma menina que gostava de estudar. O dia mais feliz de sua vida foi quando aprendeu a ler. Santificou aquela professora como se fosse prova viva de um milagre. Todo o tempo livre que tinha era destinado a leituras. Grandes viagens fizera pelos livros didáticos e paradidáticos. Toda noite, lia algo para sua mãe, sempre textos engraçados, pois adorava despertar sorrisos naquele corpo cansado; quando a história não tinha graça, ela fingia que lia e criava os parques mais divertidos para sua mãe poder brincar.

Quando um oficial de justiça chegou à porta da casa a procurar da mãe da menor Raquel dos Santos, dona Rita identificou-se surpresa:

_ Sou eu, moço, o que deseja?

_ Trago uma intimação, a senhora deve comparecer a 4ª vara da Infância com dia e hora marcada nesse documento.

Aquele homem, cujo medo saltava-lhe aos olhos, sem maiores explicações, recolheu a digital da intimada e correu sem olhar para trás, com a impressão de que aquela favela, a qualquer instante, pudesse abrir sua boca e tragá-lo para sempre.

A negritude da face de Raquel foi tomada por uma palidez mórbida, as mãos geladas choravam a tristeza que causaria à sua mãe quando tudo fosse revelado. Mas não tinha coragem de dizer a verdade e por mais que a máscara da mentira estivesse mal grudada ao seu rosto, denunciando sua culpa, a mãe recusava-se ver. Tranquila, ficou certa de que deveria ser algum engano, apenas lamentou que teria que perder o sol da manhã, e certamente, a tarde não seria suficiente para enxugar as roupas jeans que lavaria quando voltasse do compromisso judicial. Mas, por outro lado, seria bom, pois assim ela poderia denunciar aquela escola que nunca tem aula, afinal, todo dia a sua filha amada sai e volta, muitas vezes, no mesmo instante, outras, após uma, duas horas.

Ignorava totalmente o quanto a filha sofria nas vezes que era obrigada a chegar mais tarde, após duas horas de espera dolorosa pela bibliotecária. A expressão de angústia que Raquel trazia, nessas poucas ocasiões, sempre era lida pela mãe como tristeza por não ter aula.

Dia e hora marcados, dona Rita vestira seu melhor vestido, o calçado - não tinha opção; colocara um lenço a cobrir os grisalhos cabelos, que unidos aos traços cansados do rosto, envelheciam-na uns quinze anos. Raquel leu a intimação para a mãe, ocultou algumas passagens que já pontuavam, com detalhes, a culpa da menina, retomando dados básicos como endereço, horário e a obrigatoriedade de levar a menor, esse detalhe pontiagudo transpassou seu coração. Fez questão de vestir sua farda da escola, sob a desculpa de que, se a audiência terminasse logo, iria à aula. Vestiu-a tal qual a uma batina de freira condenada. Em seu desespero interior, buscava na farda uma forma de redimir-se do seu crime, naquele momento, essa roupa talvez pudesse ajudá-la em alguma coisa. Rezou para os santos dos alunos que matam aula e seguiu com a mãe para o tribunal. Sentindo-se verdadeiramente uma criminosa, assassina, não necessariamente das aulas, mas dos sonhos e ilusões de sua pobre mãe.

- Sentem-se! Orientou a juíza.

- A escola encaminhou uma denúncia ...

- Por favor, doutora, eu queria falar sozinha com a senhora antes de começar, por favor! Suplicou Raquel.

O olhar daquela menina mendigava com tanta fome de ser ouvida, o desespero do rosto não deu outra alternativa à magistrada. Pediu para que a mãe, já bastante confusa, aguardasse um instante na sala de espera.

Quase sem respirar, e já com o rosto banhado, Raquel suplicou para que a juíza não fizesse nada contra a mãe dela, pois todo dia era encaminhada à escola e voltava do meio do caminho dizendo que não tinha aula. Não conseguia entrar na escola. Sempre na esquina daquele prédio amarelo, em frente à barraca de algodão doce, quando já começava-se a ouvir os gritos dos alunos a pedirem para abrir o portão antes do tempo, tomava o seu chá amargo oferecido pelo remorso e voltava pra casa. Não era justo, ficar na escola, na boa, estudando, brincando, lanchando, enquanto sua mãe ficava em casa, com duas trouxas de roupas para lavar sozinha. Sabia que por mais que a mãe lamentasse o fato de a escola não ter aula, sentia no seu olhar o alívio por ter aquela ajuda.

As palavras de Raquel tragaram a frieza daquela representante da Lei que sofria uma metamorfose angustiante.

Era uma mulher com mais de trinta anos de profissão, de alma já tão calejada, não acreditou na emoção que perpassou sua grossa toga, à prova de afeto. O depoimento de Raquel ressuscitou algo que ela pensava já não mais existir dentro de si, a inveja da maternidade alheia, de ter uma filha que lhe desse tamanha prova de amor. Sempre tivera orgulho, ou pelo menos afirmava isso, de nunca ter casado, nem ter tido filhos, nem irmãos. Pais já falecidos para seu descanso. Tinha uma união estável com a solidão. Não lembrava a última vez que chorou, mas, naquele momento, foi tomada pelo nó na garganta que sempre amarrou os humanos, não ela: a juíza, a quase deus. Levantou-se da mesa, fingiu buscar um livro no armário que ficava às suas costas, orientando para que a menina continuasse a narrativa. As lágrimas caiam do seu rosto e percorriam juntas o longo caminho para desenferrujar seu coração. E, ao contrário do que pudesse supor, estava feliz por estar chorando. Era como se naquela data tão próxima ao Natal, a vida a tivesse presenteado com gotas de humanidade. Estava viva.

Recompôs-se, como manda a ordem dos engravatados, e, sentada à mesa, voltou a ouvir a menina que falava sem parar, numa incansável tentativa de poupar a mãe daquela tristeza, daquela decepção. “Você lembra a primeira vez que deixou de entrar na escola?” - questionou a juíza, já quase refeita. Raquel nunca poderia esquecer daquele dia, pois a dor dessa decisão não cabia no seu corpo franzino, foi a data do funeral dos seus sonhos de tornar-se médica, pois sabia que, por mais que estudasse em casa, somente a escola seria a ponte para o diploma: “era a segunda semana de aula, minha mãe conseguiu uma cliente para a lavagem da roupa diária. Nesse dia fui à escola, mas realmente não teve aula, eu voltei para casa e vi os olhos de minha mãe brilharem como nunca, como se eu fosse sua heroína naquele momento. Já estava cansada e com dores nas costas de tanto lavar as roupas sozinha. Disse: ‘ainda bem que não teve aula hoje, eu estava precisando tanto que você me ajudasse’ ”. Essas palavras de dona Rita cortaram a garganta de Raquel, naquele momento ela percebeu que já tinha cumprido o seu papel com a escola, agora precisava ajudar aquela mãe que só tinha ela no mundo. E durante esses quase dez meses, só entrava na escola para pegar os livros e devolvê-los vazios.

Dias intelectualmente muito proveitosos e fez questão de mostrar à juíza que não perdera tanto em não ir à escola, pois, apesar disso, já tinha lido mais livros do que todos os seus colegas de classe juntos. Recitou poemas, em especial, os de Cecília Meireles e Manuel Bandeira, sabia a “Evocação do Recife” de cor. Amava a sua cidade mesmo sendo uma estrangeira dentro dela, pois, quase nunca saía do bairro, porém, as poucas vezes que ia ao centro da capital, passava pelas pontes como quem flutua sobre um sonho, olhava o rio Capibaribe e as águas invadiam sua alma e vazavam no brilho do olhar. Brincava de pintar os velhos casarões e sonhava entrar no Teatro Santa Isabel. Aguardava sempre com muita ansiedade o caldo de cana com bolo de bacia no Mercado de São José. Definitivamente, Amava o Recife, uma cidade macho com cara de mulher. Mostrou também que sabia a tabuada de cor, quase todos os ossos do corpo humano, as capitais dos Estados, datas comemorativas. Já sabia quase tudo. Não precisava da escola. Injusto seria deixar sua mãe lavar toda aquela roupa sozinha. “Deus tem dessas injustiças, menina”. O olhar de espanto e indignação que Raquel pousou sobre a juíza, a fez arrepender-se de tal comentário. “Como pode Deus ser injusto! Um absurdo! Aquela juíza não tem juízo”, pensou.

Após duas horas de conversa, a juíza, já com sua toga fria, quase desumanizada, pediu para que a mãe aflita retornasse à sala. E, como retribuição, disse que ela só foi chamada ali, pois Raquel ainda era muito criança para andar todo aquele percurso de casa à escola sozinha. E o tribunal tinha recebido uma denúncia de que a menina estava sendo diariamente abordada, na esquina da escola, por um senhor suspeito que lhe oferecia chás perigosos, sendo assim, dona Rita agora era obrigada a levar Raquel, não até o portão da escola, mas até a porta da sala de aula.

Ainda que a tristeza de não poder ajudar mais sua mãe no horário da manhã tenha querido tomar conta, a alegria por não ver a decepção no rosto daquela mulher tão amada deu lugar a um sorriso bordado a ouro. Um presente para a juíza, presente que ela recebeu e guardou na caixa das poucas lembranças que tinha colhido durante toda vida.

A nova rotina fez com que Raquel redescobrisse sua paixão pela escola e, melhor ainda: recebesse diariamente o presente de andar esse longo percurso de mãos dadas ao seu anjo, que procurava diariamente o senhor dos chás para dizer-lhe umas verdades.

Quanto às roupas, sempre tirava das trouxas as mais pesadas para lavar à tarde. Era uma maneira de tornar a vida de sua amada mãe um pouco mais leve.