Outros Mundos

Era uma tarde quente de verão, como todos sabem nessa época do ano os dias se tornam mais longos que as noites e as temperaturas são elevadas. Antônio estava subindo a ladeira mais íngreme do seu bairro, o suor escorria como água pelo seu rosto e tinha dificuldade para respirar. Antônio era um senhor de setenta e cincos anos, tinha a pele enrugada, os olhos cansados e se apoiava com muita dificuldade na sua bengala. Todo domingo ele visitava a praça principal de sua cidade, lá ele jogava dominó, baralho, xadrez e até mesmo discutia sobre o futebol.

Cada passo se tornava mais penoso que o anterior e a cada segundo o sol se tornava mais impiedoso, mas Antônio não tinha nenhuma alternativa, pois para chegar até a sua residência teria que passar pela ladeira. Estava voltando da praça principal e resmungava de tudo; do sol, da ladeira, do dinheiro perdido no dominó e reclamava principalmente por ser velho.

— Porcaria de sol, porcaria ladeira e porcaria de corpo cansado, assim nunca vou terminar de subir, Oof! ufa! —

No meio da ladeira o Sr. Antônio estava se sentindo estranho; perdeu o foco da visão, tudo girava, ficou mais difícil de respirar e por um momento ele pensou que estava tendo um ataque cardíaco. Foi então que surgiu outro velhinho, ele saiu de uma das casas e socorrera o Sr. Antônio.

— Venha meu bom homem, venha descansar um pouco, sair do sol, beber alguma coisa refrescante e quando você estiver recuperado continua a subida.

Antônio não tinha outra opção, estava muito velho para subir a grande ladeira sem uma pausa. Só depois que entrou na casa do outro velho foi que Antônio percebeu que se tratava de Manuel. Manuel era um velho amigo de Antônio, eles cresceram juntos, brincaram juntos e até estudaram juntos, mas quando os dois chegaram à faixa dos vinte anos a amizade acabou e poucas vezes trocavam palavras, na maioria das vezes somente um cumprimento.

— Muito obrigado Manuel, na nossa idade essa ladeira é realmente complicada. — Antônio observava o seu velho amigo, tão velho e enrugado quanto ele, mas Manuel mantinha a barba grande, todo o seu cabelo era branco como a neve e Antônio não podia deixar de notar que Manuel estava agora corcunda.

— Sim, realmente. Beba isso! — Manuel tinha uma voz grossa, era admirável o ver falando, estava tão velho que até para falar Manuel tinha certa dificuldade, mas o sotaque era agradável aos ouvidos e o português carregava um vocabulário vasto, serviu uma limonada gelada para Antônio e depois alguns biscoitos.

Os dois conversaram bastante naquela tarde, falaram sobre quando eram crianças, e de toda a energia que um dia tiveram, e de como a gastaram. Antônio não se lembrou de maneira clara o porquê de perder a amizade com Manuel, ele chegou à conclusão que foi depois que Manuel começou a ministrar aulas, desde então eles foram se distanciando aos poucos até perderem a amizade. Agora estavam ali, conversando sobre coisas esquecidas, coisas que só sobrevivem na memória deles, esperando o sol se por para que assim o Sr. Antônio pudesse subir para a sua casa. Foi então que um assunto curioso surgiu, Antônio já estava recuperado e pronto para terminar a grande subida, quando fez o seu comentário.

— Ah Manoel, Há muitos anos eu poderia subir isso correndo três vezes seguidas, hoje em dia tenho que parar no meio para descasar, o tempo passa e nós envelhecemos, mas eu tive uma vida boa sabe. Casei-me duas vezes, tive filhos e trabalhei. Sim tive uma vida boa, mesmo nesse mundo complicado.

Manoel Levantou a sua sobrancelha direita ao ouvir o comentário de Antônio, deu um pequeno sorriso disfarçado e comentou como quem não quer nada.

— Sim meu amigo, eu também tive uma vida boa. Eu estive em muitos mundos, um mais complicado que o outro e pra ser sincero esse aqui é o mais chato, porém ainda tive uma boa vida por aqui também.

Antônio ficou intrigado, pensou que Manuel estivesse ficando caduco.

— Você esteve em muitos mundos? Que história é essa?

Manoel agora já não disfarçava o sorriso, era como se ele estivesse esperando a pergunta de Antônio.

— Pois sim, estive. São tantos que nem posso numerá-los, você vai me dizer que não esteve?

Antônio agora estava certo de que Manuel tivesse perdido o juízo, não compreendia essa história de muitos mundos, sentiu pena do outro velho.

— Eu não, só conheci esse mundo mesmo. Brinquei quando criança, eu estudei quando adolescente, e quando adulto eu trabalhei, me casei, tive filhos, netos e muitas outras coisas que qualquer homem faz. Não conheci outros mundos e eu acho que nem você conheceu. — As palavras de Antônio estavam carregadas com escárnio, ele tinha certeza que aquilo tudo se tratava de alguma brincadeira infantil de Manuel, ou quem sabe estaria realmente caducando, estava tão velho.

— Eu conheci mundos medievais, futuristas e mágicos, mundos parecidos com esse e outros tão diferentes quanto uma mente possa imaginar, conheci também seres fascinantes como duendes, orcs, dragões, trolls, bruxas, feiticeiros, animais falantes, homens de pedra, sereias, piratas, caçadores de dinossauros e muitos outros. Claro não posso esquecer que também já vi grandes batalhas, guerras por território, poder, fama, mulheres e até mesmo por tronos. Como já lhe disse, são tantos mundos que nem posso numerá-los.

Antônio já estava ficando nervoso com aquele papo de gente doida.

— Eu não sei por onde você andou, mas sei bem onde vai parar se continuar com essa história, é no manicômio, e já esta na minha hora, muito obrigado por tudo, já lhe perturbei muito, estou indo. Passar bem. — Antônio estava decido a ir embora, não tinha tempo para ficar falando besteira, até que Manuel lhe disse algo que o fez mudar de ideia.

— Posso lhe provar que já visitei muitos mundos! Basta me seguir.

Antônio tinha certeza que Manuel estava caduco, mas era muito curioso, queria ver do que o homem falava, quem sabe seria a prova de sua loucura. Então Manuel conduziu Antônio pela casa, até que chegaram ao escritório. No escritório havia uma mesa e duas cadeiras, o lugar era seco e vazio, sem vida. Havia também uma porta verde na parede do lado direito.

— Pode entrar primeiro, é naquela porta, as provas das minhas aventuras estão ali. — Manoel sorria e apontava para a porta verde. Antônio não se aguentava de curiosidade, já estava até pensando no que fazer, deveria falar para alguém da loucura do homem, ou simplesmente ignorá-la.

Quando abriu a porta verde Antônio ficou admirado, o quarto era muito bem iluminado e bonito, mas era simplesmente um quarto com muitas estantes e nas estantes só havia livros. Mas eram muitos livros.

— Aqui eu tenho um exemplar de todos os livros que já li na vida, cada um deles me levou para um mundo diferente, me fez conhecer pessoas e seres incríveis e testemunhar eventos épicos. — Manoel sorria, parecia estar satisfeito.

Antônio deu uma volta no quarto, ou melhor, na biblioteca de Manoel. Havia livros de todos os tamanhos e gêneros, havia também livros em outras línguas, eram tantos que Antônio não poderia acreditar que Manoel já tivesse lido todos, mas como era velho tivera muito tempo para isso.

— São livros homem, palavras escritas, e palavras são como vento. Ler um livro sobre um mundo qualquer não faz com que você visite-o. Não passam de livros velhos e já esta na minha hora. Foi bom conversar com você e obrigado pela ajuda. — Antônio nunca foi de ler, só lia o jornal e isso muito raramente, não se lembrava do ultimo livro que ele tinha lido, se é que chegou a terminar algum. Quando Antônio já estava subindo a ladeira com sua bengala o ajudando, ouviu o último recado de Manoel.

— Meu amigo, ler um livro é como entrar em outro universo, é uma experiência fantástica e maravilhosa, e lembre-se; nunca é tarde para começar a ler, não termine seus dias tendo conhecido só este mundo, ele é o mais chato. Passar bem! — Ficou sorrindo com a sua corcunda enquanto Antônio subia a ladeira com muita dificuldade.

Antônio ficou meio nervoso, ficou pensando se Manoel se achava superior somente por ler porcarias. Porém no outro dia ele não foi jogar dominó na praça, comprou um livro e foi ler, estava sozinho na sala lendo, ainda no meio do livro, quando pensou alto.

— Não é que Manoel estava certo, ler um bom livro é uma experiência fantástica e maravilhosa.

PH Silva
Enviado por PH Silva em 16/02/2013
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