O RELÓGIO

O menino se chamava Francisco e morava com seus pais em um quarto de pensão.

Próximo à sala de refeições, havia um pequeno aposento em constante penumbra, ocupado por um solteirão e sua mãe, há muitos anos enferma, que pouco se levantava da cama e quando o fazia, era por minutos e amparada pelo filho.

Pelo canto da porta entreaberta, ele olhava com olhos arregalados, até que o mandassem sair, para aquela senhora deitada, imóvel, de camisola branca, pernas cobertas por um lençol, pele alva e olhos fixos no teto.

Era a expressão da morte que, aos quatro anos, ele visitava pela fresta da porta.

No ano seguinte, o menino se mudou da pensão para uma casa de vila.

Aos domingos, Antonio de Faria, o filho daquela senhora do quarto de cortinas cerradas, vinha visitar os pais do menino, tamanha a amizade que se formou.

Era uma pessoa austera que pouco ria e impunha a si mesmo uma rígida disciplina, que transparecia em atitudes e gestos, parte de uma rotina metódica.

Era um homem simples, de salário- mínimo que trabalhava oito horas por dia em um laboratório manipulando cápsulas para distúrbios gástricos. Era o único empregado, fora o entregador.

À tarde, no fim de mais uma jornada, retirava o jaleco branco, ajeitava a gravata e o colete; conferia a hora no Omega de bolso, com corrente de prata, e assinava o livro de ponto. Só depois colocava o paletó.

Anos mais tarde, Francisco e seus pais voltaram para uma casa bem próxima à pensão.

A caminho do trabalho, todas as manhãs, Antonio de Faria levava o menino para o colégio.

Quando desciam do bonde, Francisco perguntava as horas. Antonio, solene, tirava o relógio de prata do bolso do colete e respondia: 7 horas e 43 minutos... Ainda estamos com tempo.

Francisco ria do gesto, da mesma resposta, e ele, austero, dizia que se deve ser preciso com as horas.

---Nada de 4 horas da tarde, se deve dizer, “16 horas”.

Certa ocasião, percebendo aquele olhar de galhofa que só os meninos sabem fazer, percebendo que Francisco perguntava por perguntar, ele acariciou o Omega; seu olhar ficou distante e disse que aquele era o único bem material que possuía.

Mais tarde, quando o menino ganhou seu primeiro relógio de pulso, ele recomendou dar corda sempre à mesma hora. Dizia que era o segredo para um bom funcionamento.

Quando tinha que acertar o relógio, Francisco recorria ao seu amigo mais velho, àquele que o levava para o colégio. Nesses momentos, ele esboçava um pequeno sorriso, retirava o Omega do bolso do colete e, orgulhoso, com precisão, informava até os segundos.

Com o Faria, Francisco aprendeu a engraxar os sapatos todos os dias porque, conforme dizia, um homem com sapatos sujos não vale nada.

E, da melhor forma, os anos foram passando.

Veio a Copa do Mundo. Uruguai, campeão.

Chegou a primeira namorada e com ela, o primeiro beijo.

Voltou Getúlio, pelo voto popular. Veio a comoção nacional com o seu suicídio.

Numa tarde de sábado, aconteceu: a mãe do Faria, D. Adelaide, levantou da cama e andou pelo corredor da pensão se amparando na parede; depois pelo quintal, mas a hora exata do milagre não foi registrada porque o Omega e seu dono estavam ausentes.

Todas as tardes, D. Adelaide ia à igreja. Depois lia o jornal que pegava emprestado na banca e escutava no rádio a novela das 18 horas. Também ia com o filho à casa do menino.

D.Adelaide viveu mais três anos; não soube de Brasília, nem da fundação do Estado da Guanabara.

A pensão fechou, foi demolida e em seu lugar surgiu uma retífica de motores.

O pai do menino tentou, em vão, convencer o Faria a morar com eles. Teimoso, optou pela casa da tia viúva, irmã mais velha de D. Adelaide.

Os pais de Francisco conseguiram, pelo menos, que ele passasse os fins de semana na casa deles.

Na era Jango, mas desde Juscelino, o salário mínimo dava sinais de fortes perdas de compra. Caminhando com dificuldade, Faria dava sinais de muito cansaço.

Assim foi que, por três fins de semana, Faria não apareceu na casa dos pais de Francisco, que se comunicaram com o irmão dele e foram encontrá-lo, na casa da tia, queimando de febre em cima da cama e muito debilitado.

No dia seguinte à remoção para um hospital, antevendo sua morte, Faria disse que tinha umas economias na Caixa Econômica e ia deixá-las para Francisco; seu pai não aceitou, porém não pôde recusar o relógio Omega de bolso que ele guardara para dar ao menino (desde algum tempo, um rapaz), quando fosse o momento.

Dois dias depois, ele faleceu.

No enterro: o irmão, Francisco e seus pais. Fazia frio e chovia fino.

Passaram-se quarenta anos.

Francisco olha pela vidraça da janela.

Olha para o tempo.

As folhas dos caquizeiros estão douradas.

Abre a caixa de madeira e dá corda no Omega de bolso, de prata, com corrente de prata.

Faz frio e chove fino.

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OBS.: este texto está registrado na Biblioteca Nacional.

Elysio Lugarinho Netto
Enviado por Elysio Lugarinho Netto em 16/03/2007
Reeditado em 27/06/2008
Código do texto: T414362
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