O Dia Seguinte

O clima era manhoso, com enfeites à tona surgia o perfume fictício do natal; as primeiras chuvas finas que desciam o leito da terra, como aljôfar de neve, abriam sulcos, onde os barquinhos de papeis rumavam ao infinito da imaginação e acessavam a alegria de um grupo de crianças, que ainda se via brincar.

Eram carreteiros, picolezeiros, jornaleiros e outros, todos os meninos a expor em segundos a infância no mais alto tom de vida.

Na estiagem da chuva, capim seco com areia no ar fizeram os meninos assentar no chão úmido e duro do centro da cidade para confabular, como se a clamar a Deus desejos natalinos. Jorginho queria um trenzinho; Higino pensou numa bicicleta; Albertinho uma bola de futebol e Zequinha um carrinho, com uma boneca para a sua irmãzinha, Nicinha, uma espécie de mascote da turma, que no momento só estava no pensamento de seu irmão.

Por um segundo alguém falou:

- Papai Noel existe gente?... E todos sob uma breve pausa de pensamento, interrompido pelo o que Zequinha, o menor da turma falou: -O papai falou que o tal papai Noel não existe!... Que isso tudo é besteira; ninguém ajuda ninguém, tão pouco alguém se preocupa em dar algo. Se a gente não trabalhar, com certeza não cai do céu!... Mais uma pausa silenciosamente melancólica e a turma se erguem sem ninguém contestar o veredito. Num suspiro de recomposição recolheram o que sobrou e seguiram no quarteirão. Entraram no futuro calados e com passos de presente pensando em suas realidades, pensando em suas moradas, quando aos olhos saltou do escuro, aquele casarão bonito, luxuoso, todo decorado com as pompas do natal e que se escondia atrás de um muro mais ou menos de quatro metros de altura, tentando proibir a curiosidade humana dos que por ali passavam.

Era noite de natal, a chuva voltava, os ânimos desgastavam os rostos e a brisa que se fazia naquele instante carregava o ar com aroma das guloseimas, que as muralhas não conseguiam impedir de passar. Foi então, que quebrando o gelo, Albertinho investiu na idéia:

- Vamos subir no muro e ver o que tem do outro lado de tão gostoso!... Mal acabara de pronunciar-se e o Zequinha foi logo pegando um pedaço de pau escorando no muro e pronto para escalá-lo, Jorginho pacientificou: - esperem!...Pode ser perigoso invadir, acho melhor irmos para casa, pois já está ficando tarde e estamos bem longe. Mas Albertinho conseguiu persuadir a turma e todos sem pensar muito escalaram o muro. Como a curiosidade infantil é mais apurada do que o perigo foram mais além e desceram.

Tendo o galho da mangueira como comparsa foram escorregando até o colo do tronco e bem devagar desceram uma escada alçada a árvore para do chão correrem à janela mais próxima, que estava toda pintada em prateado, com enfeites verdes e vermelhos, sapatinhos e bolas de vidro em dizeres de “Feliz Natal”.

A chuva tornou-se mais forte e os meninos maltrapilhos, sujos, com os pés descalços e a fome na barriga esbugalharam os olhos na vidraça e viram os seus sonhos perpassarem a sua frente. Era um trenzinho que ia passeando de uma extremidade a outra rompendo a solidão da árvore de natal no centro da sala; o carrinho elétrico dormindo na garagem de brinquedo, a bicicleta meio que deitada às proximidades da lareira, várias bolas enfileiradas e tantas bonecas barbeis em suas roupas finas. Uma mesa farta, toda enfeitada de comida jamais vista pela cultura daquelas crianças. Por horas ficaram pensativas num mundo entre o real e o imaginário, entre as paralelas daquilo que parecia uma fantasia aos seus olhos num presente ausente de suas realidades... viajavam naquele momento, quando de súbito Jorginho perguntou as horas e como a cadenciar o pensamento olharam ao mesmo tempo para o alto de uma das paredes da sala e cada um com sua deficiência alfabética tentou ler as horas, o conjunto exatificou, que já era tarde; a aflição de voltar para casa tomava conta do coração, quando enveredaram de novo pelo túnel do tempo ao verem sorrateiramente através do vidro da janela da sala de estar, um velhinho barrigudo, com a sua barba branquinha, que nem algodão, todo vestido de vermelho, com luvas brancas, um gorro e vermelho, com um saco cheio de cartas, vermelho de tanto rir comendo e bebendo daquela imensa mesa farta, que deixou o menor da turma os denunciar ao se exasperar de emoção falando alto: vejam é o papai Noel!... a felicidade atônita contagiou Jorginho, que com alegria confirmava:- é mesmo o papai Noel!... e todos num só festejam, que só quem foi criança sabe declarar ao mundo alariam sem perceber os cachorros da casa investindo contra eles. Que de um sonho acordaram para uma realidade num imenso pesadelo.

E correndo pelo imenso quintal entraram na realidade entre galhos quebrados, quedas e arranhões, coração acelerado e rostinhos assombrados, que acordaram as luzes de todo o casarão. Imediatamente a policia foi acionada, os vigilantes saltaram do marasmo a rastrear minunciosamente o quintal com suas lanternas, enquanto o papai Noel com o medo expresso no rosto empunhava uma arma de fogo com as crianças da casa querendo, entre as pessoas passar para matar a curiosidade. Não longe dali os meninos se refaziam do susto rindo abessa.

Já nas ruas do telégrafo, assentaram-se numa das estivas da rua principal, com os pés na água do rio Guajará, bem na ponte do Galo; sob um luar boêmio e um silvo pálido do vento, que refrescava a terra naquela noite, cada garoto seguiu o seu cansaço em direção a suas palafitas e adormeceram entre a confusão da existência ou não do velhinho assomada a esperança de receber do Papai Noel os seus pedidos.

Logo quando o sol nasceu, um sabiá pomposo versava a mais linda melodia no alto da mangueira, cujos ramos deitavam maviosamente sobre o leito do rio. Jorginho e Zequinha passavam com o carrinho em direção a feira do Barreiro, onde comercializavam o seu ganha pão. Higino levantou cedo para vender os seus jornais e Albertinho com sua geladeira de isopor organizava os picolés na sorveteria “A vez é sua” para vendê-los na feira. Nicinha, por sua vez brincava alegre e satisfeita com uma cabeça de boneca, que veio na enchente do último inverno, e ela guardava com o maior carinho.

Lá pelo meio dia, os meninos se encontraram cansados, tristonhos, confusos... Assentados nas estivas e com os pés no leito do rio sentiam as lágrimas falar a verdade, que muitas das vezes não se quer aceitar. Zequinha, o menor, tornou a esboçar palavras sem ninguém perguntar:

- Porque papai Noel não veio nos visitar?...Fizemos muitas malcriações como mamãe diz?... Agente até passou de ano! Replicou Higino: será que até aquela comida era de mentira?!... Tinha tanta comida gostosa e nós com fome! Já pensou se o pessoal daqui descobre, que tem uma casa assim?!...Já pensou se pudéssemos dar para todo mundo um presente?!...Ninguém mais aqui no bairro passaria fome!

Por um silêncio, os carros na avenida fazendo barulho, enquanto os meninos entreolharam-se e cada um seguiu o que lhe proporcionou o dia.