O Filósofo e o bêbado.

_Por que vives a tombar com os efeitos do álcool, homem pequenino?

_Se incomoda a ti ou à tua filosofia, deixa-me quieto a beber. Mora nesta garrafa o meu nexo de vida. É assim que acho graça nela.

_Então o álcool é maior do que tua alma?

_Minha alma já morreu bêbada. Não tenho mais nada dentro de mim. Estou oco.

_Oco? Ou cheio de álcool?

_Oco mesmo. O álcool vai para o sangue e sai no ar expirado. Comigo mesmo só fica a embriaguez, minha amiga de fé. Dá-me as coisas que quero ver e sentir. Os bichos do meio do dia e os do meio-dia.

_Então já tens alucinações...?

_Se o nome dessa coisa boa que eu sinto é isso que falaste, eu digo que sim.

_Não gostarias de conhecer o meu mundo? Viver de meditação? Amar a vida?

_E quem te falou que eu não amo a vida? Minha vida é o álcool que bebo. Sem ele já estaria morto.

_E antes de ele chegar, tu não enxergavas?

_Antes dele eu não tinha nada. Deram-me o primeiro gole, o segundo e hoje trago dezenas dele para me achar com a vida de novo. E teu mundo, como é?

_É bonito. Troco a alucinação pela reflexão cheia de vida. Vivo achando as minhas próprias pegadas na estrada da vida. Tudo o que penso eu realmente posso ter.

_Duvido! O que pensas não pegas jamais. Voa, vai-se embora. Se tiveres grana, até podes comprar. Eu, com meu álcool sinto-me diferente, mas sinto. Viajo e gosto do que vejo. Quando quero repetir a viagem, bebo mais e pronto. Quando quero ver um elefante, não bebo no copo, vou à garrafa.

_Quando olhas para o céu, à noite, o que vês?

_Depende. Quando estou sóbrio, vejo menos estrelas. Quando o álcool está me inebriando a cabeça, vejo estrelas além da conta. Estás vendo como ele me dá mais?

_Não. As estrelas que eu admiro, são reais. As tuas cintilam na tua alucinação. Não são reais.

_Pegas as tuas?

_Não. Vejo-as de longe.

_E então, pra que ver ao longe e não poder pegá-las? Eu vejo a mais e pego todas.

_Falas como se pudesses pô-las no bolso e levá-las para qualquer céu que encontrares por aí.

_Com meu álcool sou até astronauta.

_Mas, eu tenho uma longa vida para admirar o céu, e tu não!

_Tens certeza? Eu conheço um filósofo que morreu eletrocutado quando admirava o céu em um dia de inverno. E o que é que me dizes disso?

_Isso foi uma fatalidade. Não conheço história nem ao menos parecida com essa.

_E história de bêbado que morreu eletrocutado, tu conheces?

_Não!

_Estás vendo? Estamos um a zero, concordas?

_Não queira justificar esse vício dentro de preceitos saudáveis de vida. Isso é uma terrível droga. Uma grande algema .

_E quem te falou que eu quero justificar nada? Tu me viste e indagaste. Eu estou apenas respondendo às tuas perguntas.

O filósofo chegou à exaustão e não conseguiu convencer o bêbado de que devia acabar com o vício. Não achou mais argumentos para lhe mostrar o outro caminho da vida.

Passados dez anos, o bêbado teve que ser levado às pressas para o pequenino hospital da cidadela onde morava. Chegando lá foi logo atendido. Era conhecido e querido pela população. Fizeram-lhe glicose endovenosamente e em seguida o liberaram. Ao sair, deu de cara com o filósofo que entrava agonizante no mesmo hospital.

_Que houve contigo, seu filósofo?

_Bebi demais sem saber e quase morri.

_E por que bebeste? Não és contrário a quem tem esse vício?

_Sou, mas desde aquele dia em que não te convenci a deixar a bebida, iniciei o meu vício. Quis saber o que achavas na vida, mais do que eu na minha lucidez.

_E então, o que te sucedeu?

_Cada vez que bebi, perdi-me um pouco de mim mesmo e da vida. Os caminhos, as estrelas continuam as mesmas. Eu, que mudei a marcha para passos sempre mais largos, não me fiz caber neles.

Competi com os automóveis da rua e trombei com um deles.

_Mas, filósofo, pra tudo na vida é preciso jeito. Até para beber. Eu não bebo para andar, só ando para achar a bebida. Aí, me sento, ponho-me a beber e os outros me levam quando já estou caindo.

_ Mas eu não sabia de nada disso, ó meu colega. Bebi e me derrubaram.

_É uma pena! Quero dizer-te que até para se embriagar é preciso conhecimento, tá?

_Eu não quero mais beber, nunca!

_Então tudo bem. Vá filosofar. Qualquer hora dessas a gente se encontra de novo.

Passaram-se mais dez anos e eles se encontraram no mesmo local. O bêbado teve seus sintomas resolvidos com a mesma conduta de antes. O filósofo, esse tinha sua saúde exageradamente comprometida. Ao tentar largar o vício, provou de vários medicamentos, na sua maioria drogas pesadas e começou a dar-se mal.

Agora, nem o vício nem a vida. O bêbado olhou-o demoradamente e sorriu. O filósofo, acanhado e triste, disse-lhe:

_O pior do teu vício eu não consegui reproduzir.

_E o que foi pior?

_Teu egoísmo indigno!

_Egoísmo? Não te entendo!

_ Pois saibas: era tua obrigação ensinar-me a conviver com ele e aí eu não teria chegado a tanto.

_Mas, seu filósofo, eu nem sabia que teu filosofar era falso.

_Falso, por quê?

_Porque filosofaste para me convencer a deixá-lo. Eu não aceitei, continuei no barco e vivendo do mesmo jeito. Tu te acabaste. E isso é egoísmo?

_Eu não sei é mais nada. Quero morrer! Que tu te danes com o álcool!

_Nós vamos nos danar é para algum lugar alegre que nos queira bem. Doutor filósofo, cada macaco no seu galho e cada embriaguez na cabeça escolhida apropriadamente, ouviu? Tua filosofia é bem pior que a vida que tive outrora: só me trouxe desequilíbrio e artificialidade. Deixa-me filosofar com meu copo cheio.

Dois meses após aquele encontro, o bêbado foi ao velório do filósofo e chorou a sua morte, sorrindo fartamente. Estava ébrio e o outro, frio, representando o mais objetivo significado dos que filosofam ou não na vida, cheia ou vazia de álcool. Uns lúcidos, outros ébrios, mas todos dentro da real finitude da carne a qual se faz profundamente inocente, não lhe importando se com filosofia ou bebida.

O bêbado tragou do seu mal e viveu muitos anos. Ainda ontem arrastaram-lhe do boteco do mercado. Vez por outra em suas alucinações conversa horas e horas com o filósofo.

_Vai-te! Nem morto você me deixa beber sossegado?