O Morcego.

O Morcego.

Meu amigo, o morcego do primeiro andar, entrou pelas frestas duma velha janela de vidro e passou a dar vida a sua solidão no burburinho do andar térreo do meu escritório de trabalho. Bem provavelmente – é certo – alimentava-se de frutas ou de sangue – não sei a que espécie pertencia, ele carecia deixar meu escritório e sair na sombra da lua ou na escuridão doutras ausências, para se alimentar. Na negritude da noite seu voo acomodava-se!

Ouvi um grito de pavor vindo da sala. Este fora o primeiro dia de amor. Que dia! Abracei-a fortemente e senti seu corpo rente ao meu, trêmulo de medo; o meu, de desejo – os dois juntos num instante mágico, entre o lírico e o mágico – enfim – uma pequenina história de pavor.

Não insisti para saber os motivos do grito. Deixei-a agarradinha à falsa coragem do meu corpo. Meus olhos só conseguiam vê-la e nada mais, porque o homem também usa dessas estripulias, desse modo, para temperar conquistas. Eu não fui a ela, mas ela veio a mim.

Eram seis horas. No inverno equatoriano já se vê a escuridão assentar-se no espaço onde o vento mora: tudo vai escurecendo. Um dia morre. O mamífero abre vôos rasantes em qualquer direção – ao meu ver – mais à procura de gritos do que de alimentos. Face vampiresca, draconiana, quadro desenhado satanicamente na velha Transilvânia de Conde conhecidíssimo, como nos diz a fábula.

Ela permanecia agarradinha ao meu corpo. Comecei a alisar sua cabeça, desci à nuca, apertei seu corpo, mais fortemente, na direção e no sentido do meu, agora mais fogoso do que antes.

_Ai..., ui...

E achegou-se com ainda mais força ao meu corpo. Que bom! Eu estava lucrando com o pavor da linda e doce secretária que ainda iria receber pelo primeiro mês trabalhado. Eu estava satisfeitíssimo com sua dedicação, seu empenho, sua produtividade.

Ela trazia a face escondida entre suas mãos e estas colocadas junto ao meu tórax. Tentei puxá-las e deixar que sua face encostasse diretamente no meu peito. Consegui. Por isso, apertei-a, cuidadosamente, ainda mais. Sentia o pulsar desembestado do seu coração amedrontado.

Que saboroso pavor o dela! Pôde ele ofertar-me, ao fim daquele dia de intenso laborão, o prêmio de sentir o perfume de seu corpo macio feito pluma.

Porta e janelas fechadas dentro do meu escritório. Precisávamos sair. Acho que por mais de dois felizes minutos a tive docemente comprimida ao meu peito. Era hora de irmos. Planejei levá-la até à porta de saída do escritório. Estava soprando um ar machista – entre Dom Ruam e Zorro –. Sentindo-me comparado a esses dois heróis, disse-lhe:

_Vamos?

_E o morcego?

_Vou te levar até lá fora. Não vou deixar que ele te ofenda. Fecha os olhos, agarra-te fortemente ao meu corpo e deixa o meu levá-lo, sem pressa, até a porta de saída.

Ela abriu os olhos pela primeira vez como se houvesse desconfiado de minhas enésimas segundas intenções. Cheguei a lembrar-me de um velho amigo, neto de italianos que, tendo aprendido com sua avó paterna certa palavra no idioma daquela, dizia-me, quando estávamos construindo essas segundas: “Que safatessa!”

Chamei-a para deixar seu corpo adequado às côncavo-convexidades do meu – apenas as fantasiosas – nada das reais que respiram, têm sede e fome. Essas ainda não! Havia um mínimo de controle.

_Vamos? Posso abrir a porta?

_Ai meu Deus..., e se ele ainda não tiver ido embora?

Rezei para que o morcego amigo não oferecesse alívio ao medo. Estava tão bom ao seu lado, meus braços cobrindo seu corpo infante, quase uma cria, quase uma ninfeta!

Inspirei profundo e pus a mão no trinco. Abri a porta devagar. O resto ela narra por mim.

_Ai..., olhe ele...

_Doutor Valeto, o senhor também tem medo de morcego?

_Feche a porta, rápido!

Saí e o deixei trêmulo de pavor. Na fuga do tempo, me deu aquele monstrinho preto, evadi do escritório e nunca mais voltei. Meu primeiro e único salário, quem o recebeu foi meu pai. Os telefonemas do doutor Valeto me chegaram aos borbotões como se eles fossem, morcegos. Que homem frouxo! Representou tão bem o herói simulando proteger-me. Se tivesse desconfiado, haveria aberto a porta daquele escritório cinco minutos antes e teria me livrado do horrível cheiro que ele me deixou na blusa. Não usava desodorante. Quem sabe foi esse o motivo de aquele morcego não nos ter incomodado mais. Mal cheirosa mesmo foi-me a sua frouxidão!