Os dois anjos do sonho.
Em minha sepultura do dia D, enterrarão apenas o que não encheu minha alma. Devolver-se-á à terra o que nunca fora meu: o corpo material emprestado pela vida da natureza para proteger a alma.
Vou levar, sim, a bravura que me acompanhou diante dos grandes problemas existenciais que tive e com os quais brinquei para aprender a ser feliz. Viajei nos pântanos da impaciência e pude receber, com as festas solenes que o tempo me deu, a comenda da acomodação que as tempestades bravias me ofertaram.
Venço a cada dia, catando em cada gesto escondido o que da vida flora satisfeito e me convida a viver ajardinando. Se o galho quebra-se com o peso de minhas dúvidas, beijo contente o chão que pode até ter quebrado minhas pernas, mas me ofereceu asas para voar com o que de material me deu meus sonhos de aventureiro em busca das estrelas, antes mesmo de ver que tinham elas brilho.
Minha dor, as que senti tão desesperadamente, não incomodaria a tantos outros que também tiveram as suas, diferentes das outras, todas elas no alicerce de angústia e lamentos com e sem lágrimas.
_Por que você discursa essas dores suas?
_Para encher suas perguntas!
_E se não houvesse feito elas?
_Fariam-nas outros.
A morte que me chegará um dia provoca meus pensamentos e o faz tecer ideias sobre ela. Quando a completude dos conhecimentos parecer-me andar depressa ao lado do que me descobriu dos ensinamentos da vida, ela estará a zombar de mim, mais próxima ainda. Mas dela tirarei, antes de morrer, versos mil, para me deixar frutificando nos quadros que alguém puser os olhos como ouvidos líricos depreendedores das sombras do espírito, cheias de sons.
_Você tem medo de morrer?
_Antes de ter vivido minhas outras mortes!
_Quantas tem?
_Tantas quantas forem as respostas escondidas por aquela, das questões menores que não pude dirimir.
_Então você morre a cada dia?
_A cada instante, porque até o tempo não se define diante de minhas ventanias indagadoras. As cordas do meu relógio não marcam apenas as horas.
_Marcam os minutos e os segundos.
_Não! Marcam o que desmarca a vida daquela primeira morte sobre a qual me pergunto no começo, lembra-se?
_Morreu no meu relógio natural, tão diferente do seu.
_Meu féretro ficará escondido das lágrimas do meu espírito. Quando dele sair, dará as costas e irá nirvanar à frente de tantas outras búdicas almas que encontrar. Meus islâmicos pensamentos me farão um judeu doce e então adorarei Jesus com o canto ressuscitante saído dos atabaques dos candomblés. A história que deixar plantada será holisticamente forte porque terá todos os azulejos da sabedoria do povo do mundo com quem aprendi um montão de sonhos.
_Você mistura as coisas como se elas fossem pedaços de pedra.
_A pedra sou eu sem suas ideias afastadas de outras mil.
_Parece-me doente. Repudio esse pensamento quem tem você dentro da alma.
_A doença é que não deixa ver o que presta em nós dois. É hora de deixar que os minutos não sejam só do tempo. Brinquemos com o que não descobrimos ainda passar.
_Prefiro o que se reproduz à luz do conhecimento escrito há séculos.
_Esses séculos só não morreram por causa de nós que os guardamos. Por que não outras coisas também?
_Em que baú? Prateleiras há que sirvam para isso?
_Os baús mais interessantes são os que nos cabem: nós e nossas ideias.
_Prefiro permanecer nos que não permitem tais ideias tão diferentes da maioria.
_A maioria não sabe onde estamos.
_Onde você está! Não eu!
_É porque teu baú não tem lastro firme. O peso de sua ignorância é desigual ao que possa sustentá-lo.
Não me interessará ter a finitude do corpo material, nem tampouco ser o corrente desfazer-se em si próprio igual ao das águas do rio de Heráclito de Éfeso. Prefiro dançar um samba-canção, comer batatinhas fritas a ler a Divina Comédia de Dante. Meus limites não deverão interessar nem mesmo aos meus músculos. Quero ser o senhor de minhas idéias, degustar de seus confrontos com o mundo medíocre ou pelo apaixonante diferente como o meu.
_Você é uma coisa incerta. Nem um sonho o é.
_Vejo você de melhor maneira. Suas qualidades nem você as conhece.
_Quais delas seriam assim tão interessantes para um despertar?
_Algumas coisas a mais que sua satisfação em ser tão limitadamente ignóbil.
_Mas no meu está o seu.
Passei cem anos de solidão, gabrielizando minha preguiça de sonhar. Achei todo o tempo perdido do Voltaire. Colori sixtinicamente o teto de minhas ideias miguelinas, até aprender a desalar os corvos que Allan pôs nas retinas do meu inconsciente.
Já era muito tarde. A coruja chilreava enquanto a madrugada sorria. Meu sono, fantasiado de pierrô, colombinamente virava palhaço de árvore de Natal e não dançava mais. Desci as escadas, pulei a janela para abrir a porta escancarada e, solitariamente, descobri que estava na multidão do meio da rua. Meus sentimentos favelizados descumpriam a ordem opressora de minha razão e destruí o pequeno sábio desavisado que dormitava alegre dentro de mim, para poder morrer calmamente na falta de perguntas de quem me perguntasse sobre a vida da morte.
Meu enterro foi apenas normal, entre lágrimas falsas de sorrisos singelamente verdadeiros. Nunca mais acreditei em nada, apesar de concordar com o mundo. E os dois anjos maravilhosos morreram dentro do meu sonho, para que eu pudesse abrir os olhos, acordado, sem sono e outra vez vivo e com medo de viver.