O Suicida
Meu solilóquio alimentava a vontade de suicidar-me. A madrugada se descobria do luar e ficava escura como o pardo quase infinito da tristeza de minh’alma. Eu chorava. Era a única coisa que meu desespero me lembrava fazer. A cerimônia punha à luz as lembranças horríveis daquela noite que passara com Eny. Era como se minha aflição tivesse uma consciência independente de minha alma e eu houvesse perdido o controle de tudo. A noite me jogou diante do inferno mais tétrico que era possível existir àquela hora.
Um homem fracassado não olha para o céu, desaprende a amar e alimenta uma revolta poderosa que o distrai do sério. Eu, percebia, estava no fosso de uma gruta escura e fria. Meu olhar introspectivo não me achava recuperável. Os minutos se arrastavam e eu ficava mais infeliz ainda.
As lágrimas mornas e cáusticas diziam para mim, ao deslizarem pela face, que eram elas as únicas vantagens de quem ficava profundamente triste. Meu desprezo vinha de dentro de mim, das profundezas demoníacas que nem sabemos, existem tão vivas dentro de nós. Pobre homem eu fui, eu estava, eu vivi!
Senti que o sol queria adormecer a madrugada e tive que agir. Fechei a porta do quarto, tirei a corda fina de náilon que havia posto sob o travesseiro, por baixo da fronha, desatei seu nó, olhei-a fixamente entre meus dedos e lacei meu pescoço como se provasse o número da morte. Seria aquele instrumento que me levaria dali. A alma é claro! O corpo ficaria inerte.
O televisor estava aceso e sem som. Um copo meio d’água, do começo da noite, continuava sobre ele. Pressenti que era o fim e senti um medo diferente. Os pelos dos braços eriçaram, minha fraqueza era forte, meu corpo acovardou-se diante de tanta dúvida.
A aurora da manhã quase me fez desistir da loucura que estava desenhada. Era tarde. Meus passos se apressaram, meu corpo pendeu para um último precipício, aproveitei para ir...
Vi como era triste a hora da morte. Nada me doeu no corpo. Lembro-me de que, quando quis arrepender-me, era tarde e não pude fazer mais nada.
Quando toquei meu corpo, não só o senti frio, como percebi estar fora dele. Olhei em torno: a corda abraçando-me firme ao redor das jugulares, a língua arroxeada e dura entre os incisivos, tudo isso encoberto pela porta e as cortinas da janelas fechadas.
Tive que deixar meu corpo para trás. Um tufão me expulsou do quarto. Queria chorar de saudade, mas não podia fazer as lágrimas. Levaram-me, não sei bem para onde. Havia muita luz e um silêncio estranho aos meus ouvidos. Uma paisagem extraterrestre, talvez. Uma luz pardacenta.
Não aconselho a ninguém se suicidar. A dor maior só começa após a morte do corpo. É uma dor estranha que dói na carne que não temos mais. Passamos a ouvir essa dor, como se ela própria fosse a nossa voz de súplica. Segue-nos uma sombra fria e silenciosa.
Pensei que a dor de quem ficava era desprezável. Morreu, se acabou. Nada disso: é diferente a nossa outra realidade, bem diferente mesmo. Só eu sei os caminhos que tenho que percorrer para me livrar dos múltiplos suicidas que me nasceram daquele que fiz e me parecia ser o único. Agora, se eu não desviar o desamor dos que ainda estão aí, entre vocês, eles me darão cordas grossas e pesadas, exigindo que eu as use para continuar sentindo o que me fora covardemente real outrora.
Viver aqui, para mim, é pagar a sombra que me vestiu ontem. Por isso, imploro-vos: não vos deixeis viver meio à tentação do suicídio. Esse estrupício parece não nos abandonar nunca. Mata um corpo já inexistente a todo o instante que nos lembramos da hora que fraquejamos.
_Renoir, você se cansou muito hoje.
_Nem sei o que fala, mestre João.
_A sessão está encerrada, senhores. Vão com Deus.
_Quem veio hoje, mestre?
_Um suicida ainda apavorado com o que havia feito.
_Entrou noutro, então...
_O que você me disse, Júlio?
_O que jamais faria de sã consciência, mestre João. A vida não nos pertence. Meu corpo é um casulo emprestado do pó da terra, feito para receber os inquilinos que nos manda alguém que possui todo o cerne da luz do universo.
_Renoir, eu nunca sei diferenciar em você quando há transe ou lucidez...
_Nem eu, senhor...