Os sapos do rei
_Conte-me algum velho conto, daqueles de antigamente, quando vivia fortalecida dentro de mim uma infância mágica.
_Lembra-te de algum, filha?
_Qualquer um dos que começavam com a magia do “era uma vez...” e a voz suave da senhora me entorpecia, e não havia pressa de viver e amar e eu ainda não pensava o quanto me seria difícil ser adulta um dia. Já não falo do mal que me assola rudemente!
"_Era uma vez, pois, um lindo sapo encantado e um horrível príncipe desdentado e rude. O sapo, faminto por não encontrar mais insetos para comer, havia emagrecido bastante; sua prole já lhe era pequenina; sua espécie ameaçada de extinção vivia sob uma grande pedra de um rio. O príncipe, não! Fartava-se com seus grandiosos galpões de aço abarrotados de alimentos; eram vigiados dia e noite por altos e fortes homens brancos, com a ordem e o poder para exterminar quem ousasse roubar dos tais galpões sequer um grão de cevada.
O rei , pai do príncipe maldoso, era velhinho, mas não havia perdido o hábito de ser generoso para com quem o visitasse e, para manter-se assim, embora escondido do rei, seu pai, não deixava de ter punhados de grãos em suas vestes, para doar aos necessitados. Fazia isso sempre.
Certa manhã ensolarada de verão, o príncipe fora avisado por seus assessores reais que o calor excessivo dos últimos dias estava deteriorando os grãos guardados. Uma praga de insetos desconhecida até aquela época estava invadindo os galpões, e os inseticidas que haviam sido usado não estavam surtindo efeito. Foram ao Rei cavucar sua grande, experiência à procura da cura do mal.
_Senhor rei, meu pai, desejo contar-lhe um grave fato.
_De tudo já sei, senhor príncipe, meu filho. Foi por isso que não quis que você dirigisse o reino sem as minhas velhas lições de vida, apenas no molde de suas falas modernas.
_Mas senhor rei, meu pai, suas idéias estão ultrapassadas; o reino cresceu muito, há bocas demais para serem alimentadas, cobramos impostos caros e temos que produzir muitos alimentos. Suas velhas soluções não me parecem ser as de hoje carecidas.
_A solução está com nosso amigo, o sapo.
_O sapo? E quem já se viu sapo falar?
_Fala sem necessitar das palavras. Há milênios eles vêm a nos proteger de pragas: comem os insetos, limpam os campos reais. Hoje, quase dizimados pelos pesticidas que o reino tem usado, podem fazer muito pouco. Só os sapos podem oferecer a solução do problema deste velho reino governado por moderníssimo príncipe, cheio de idéias novas.
_Meu pai, eu governo com computadores modernos, assessores com doutorados em suas áreas de atuação, assessoria bem preparada.
_A universidade onde os sapos estudam é maior de que tudo isso!
_O senhor – rei, meu pai, está esclerosado. Fala sobre cousas indizíveis.
_É bem possível, príncipe e filho meu, mas passo um momento de muita lucidez. O que lhe digo agora é verdade desde muitos sóis e muitas luas. O que é velho já foi criança; o que é moderno já percorreu caminhos simples; num desses, o senhor príncipe, meu filho, atalhando meus velhos conselhos de rei vivido, preferiu adentrar por amplas avenidas onde se matavam os sapos em prol dos venenos nem tão inocentes.
Passados dias, o príncipe retornou ao rei, seu pai.
_Não há mais sapos nos campos do reino.
_Há sim!
_Onde, senhor rei, meu pai?
_Vá até a ponte do riacho da espada. Em seu leito seco há uma pedra azul muito grande. Mande dez homens levantá-la e acharão a última família de sapos do reino.
Assim foi feito. Dez homens não conseguiram retirar a pedra do lugar; vinte deles foram necessários . Sob ela havia meia dúzia de magros sapos, amarelados, famintos, tristes. Aguardavam apenas a hora de morrer. Levaram todos eles dentro d’uma caixa de papelão, até a presença do rei. Leva curiosa os fez mais incrédulos doque qualquer outra coisa.
_Olá, meus amiguinhos queridos, quanto tempo não os vejo.
_Senhor – rei, meu pai, o senhor não pode dirigir-se a sapos como se fossem gente.
_Posso, meu filho príncipe. Devolva-me a coroa que minhas pernas fracas e velhas ainda poderão salvar seu reino moderno e pragueado, eu e apenas esses sapos maltratados.
_Mas o senhor está muito idoso, adoentado...
_Só preciso dessa velha família de sapos para salvar o príncipe, o reino e sua gente.
O rei assumiu o reino, trocou os novíssimos assessores do filho por velhos empregados amigos do reino que já não trabalhavam há anos. Escolheu um primeiro galpão de grãos para testar os sapos e foi um sucesso. Dia e noite ouvia-se o estalado dos insetos fugindo das línguas fortes e compridas dos sapos, e por esse método o reino foi salvo. Dizimou-se a praga cruel.
O príncipe envergonhou-se de ter carecido da ajuda de seu velho pai e das lições de vida tão antigas que não estavam nos computadores de sua moderna onipotência pretensa e acreditada.
Em um brumoso e frio dia de inverno, o senhor rei faleceu. Os galpões haviam sido descontaminados pelos sapos, o reino estava próspero e o príncipe agradecido e envergonhado. Coaxavam inúmeros deles nos arredores úmidos do castelo. Eram fortes e ágeis, pulavam dezenas de metros em busca de insetos. Orgulhosos, cantavam à natureza recomposta
O príncipe, convencido então da grandeza do poder dos sapos, mudou o nome do reino para Sapolândia e, envergonhado, partiu para terras distantes, onde, sem que ninguém o conhecesse, passou a viver como protetor dos animais. Sua casa era repleta de batráquios, que passou a amar firmemente, único remédio que achou para despraguear os campos produtores
de proteína do mundo moderno que habitou até morrer, cinqüenta anos mais tarde.”
_ Ah! paizinho, como eu queria poder voltar a ser uma criança feliz. Não dá! Espero apenas minha hora chegar e partir triste. Quem me dera apenas passar a viver como esses lindos sapos de seu conto...
_Filha, vou usar uma velha arma que aprendi com meus velhos pais e eles, com os seus: a oração. Passarei a ser agora aquele velho rei abandonado. Lembrei-me das orações. Ser-me-ão as armas de venturosa cura. Não precisarei nem do príncipe.
E, como em Sapolândia, a filha do homem foi submetida a uma arriscada cirurgia. Recebeu um rim de seu velho pai e sobreviveu ao tumor, que infernizava sua vida.
Hoje ela é, como ele, naturalista: dirige uma sociedade de proteção aos animais e ama os sapos e a terra onde vive. Publicou três livros de contos – edições esgotadas – e vive a ocupar a metade de seu tempo com palestras de esperança para desenganados de cura pela ciência.
Como se pode ver, dentro de cada alma generosa há sempre um imenso reino de amor, cheio de poder e de glória; basta-nos tratarmos bem os reis, os príncipes e, principalmente, os sapos!