Um dia confuso

Era dia, não sei, talvez noite.

Não me recordo bem, estava confuso.

Não apenas eu, o mundo também não andava lá essas coisas. Por exemplo, lembro que no caminho esbarrei num cão que proferiu a mim ofensas com tanta clareza, que jurei que falava o português. Delírio meu, afinal... Como não ser? Definitivamente cães não falam.

Estava frio, e dava a impressão de que agulhas penetravam todo o seu corpo, mas por um estranho motivo, esse frio se dissipava repentinamente e as vezes fazia calor a ponto de nos fazer transpirar. O céu também era confuso, um turbilhão de nuvens cinza, baixas e que pareciam pesar uma tonelada estavam sobre minha cabeça.

As pessoas passavam, hipnotizadas pela doce dança do vento que obrigava as árvores a sacudirem seus membros frondosos, em reverência à sua música, de assobios brunos. Mas o mais estranho foram as pessoas que vi sofrendo uma espécie de metamorfose.

Peguemos como exemplo um policial, não o que conhecerão logo mais, entretanto um que passou por este que vos fala em plenos braços do acaso. Estava eu admirando, todo o esplendor tenebroso que a confusão daquele dia causava.

Quando de repente ele começou a apresentar uma aparência aterradora.

não sei bem como descrever...

...seus olhos brilhavam de uma maneira estranha...

...de sua boca, saiam uns grunhidos estranhos...

Como os de uma ferra...

...Angustiada por uma dor aguda...

...A princípio fiquei a observar o pobre homem, sua aparência, no entanto não mudava drasticamente.

...Ganhou um imenso par de asas...

...Grandes mesmo...

Desculpe a bagunça, mas como disse foi um dia confuso. Vocês podem até achar que é delírio meu... Será? Mas eu vi, a princípio eu confesso que também achei que fosse. Porém então eu vi uma menina, linda a pequena, parecia uma boneca. Uma boneca de porcelana francesa! Olhos grandes e vivos, azuis como o céu, os cabelos vermelhos enferrujados, caindo sobre o pequeno ombro, trajava um vestido azul bem claro, quase do mesmo tom de seus olhos. Se transformar em um gato, um gato negro, com pelos lustrosos e grandes olhos azuis, lindo como a noite. Apesar do susto não me permitir recordar sua beleza com exatidão.

Pude ver também um homem rastejar no chão enquanto sua pele era transformada, na pele de um réptil, seus braços sumiam ao redor do corpo, suas retinas diminuíam até se tornarem dois riscos negros sobre um fundo amarelo vívido. Falava silvando feito uma serpente. Essas coisas começaram a me perturbar, de tal forma que senti um desejo profundo de correr, e me esconder, pois tinha medo que o próximo a sofrer a mutação fosse eu. Então comecei a correr, no caminho vi todos os tipos de transformações que se possa imaginar. Mulheres que viravam pássaros, e saiam em voo em plena avenida, homens saltando feito canguru, ou fuçando no lixo feito ratos. Foi a coisa mais assustadora que vira até então.

De repente em meio a minha corrida sem rumo, me deparei com duas mãos, que me seguravam firmemente, olhei para o rosto de seu dono, e pude fitar um homem enorme com aparência rústica e uma grande cicatriz no lado esquerdo de sua face, sua voz era estrondosa como um trovão. Perguntou-me para onde estava indo correndo feito um louco, e eu me senti aliviado por ter achado um policial, aquele que mencionei antes. Tentei acalmar-me para explicar o que havia presenciado, observei que ao redor não havia indícios das transmutações. Nem qualquer outro tipo de algazarra, me senti um pouco mais seguro. Ledo engano meus amigos. O homem que representava a lei, ficou ali a me interrogar, sobre de onde eu vinha, e para onde ia às pressas, o que tinha feito para estar com aparência e comportamento tão suspeitos.

Eu achei estranho, mas tentei explicar as coisas que presenciei, a poucas quadras dali. Falei-lhe todos os pormenores, expressando o motivo de minha angústia. Enquanto ele me fitava, com o olhar penetrante, e a expressão de langor. Ao fim de minha exposição, perguntou-me se eu possuía família ou mesmo um parente com quem pudesse fazer contato. Disse-lhe que tinha uma irmã que morava na cidade vizinha. Que não ficava muito longe dali, mas devido à hora avançada, não seria fácil fazer tal contato. Então, pediu-me gentilmente que o acompanhasse, segundo ele, me levaria aos cuidados de quem era de competência. O fiz sem hesitar, enquanto se dirigia à viatura que se encontrava bem próximo de onde estávamos, abriu a porta e pediu para que eu entrasse, agradeci e o fiz.

No caminho, reparando pela janela e depois de termos saído de onde estávamos há alguns minutos, percebi que ele não me levaria à minha residência, mesmo porque eu não havia dito onde ficava. Foi quando percebi lá fora que as mutações persistiam, e aconteciam até com os animais. Vi cabras ao longe levantarem e saírem andando como se fossem bípedes, vi cachorros, se transformando em mulheres, pássaros caindo do céu na forma humana, e produzindo um estrondo oco ao chegar ao solo. Olhei para o policial que se achava atônito a tudo que estava acontecendo. Dirigia com toda a atenção sempre olhando para frente, sem dizer uma palavra. Perguntei-o então se estava vendo tudo o que estava acontecendo ao nosso redor, e ele me olhou com desdém, balançou a cabeça e soltou um gemido no lugar da resposta.

Chegamos a uma casa grande branca, onde dois homens de pele branca e lustrosa, feito à pele de lagartixas, vieram nos encontrar na entrada. Abriram a porta e as lagartixas me conduziram para o interior do imenso terreno arborizado que circundava a enorme casa. Olhei o policial, que não esboçou reação alguma, a não ser a de uma cusparada que caiu pesadamente a poucos metros a sua frente. Por algum motivo que desconheço, não fui acometido pelo medo, mesmo sendo evidente que aqueles homens-lagartos haviam sofrido uma mutação parcial. O que mais chamou minha atenção foi a evidente apatia do policial às mutações. Era como se não as visse, ou pior, como se elas fossem irreais. Tremi por dentro.

No interior da casa fui acolhido, por outras pessoas de peles brancas, e me trataram como uma visita me ofereceram água, comida, e me levaram a um aposento, todo branco com uma pequena cama, as paredes eram confortáveis, e o lugar enorme.

Fiquei naquele, cantinho por horas, reparando em todas as partes do meu corpo para saber se sofriam alguma modificação. Constatando que permaneciam as mesmas. Tranquilizei-me, creio que cheguei até a adormecer. Fui desperto, por um clarão repentino que caía sobre mim.

Quando olhei a sua origem vi um dos homens-lagartos, acompanhado da silhueta de uma mulher. Não consegui reconhecer de pronto devido à violência com que a luz invadiu minhas pupilas. Após alguns segundos pude reconhecer as feições, muito semelhante as minhas. Era minha irmã, fazia tempo que não a via, mas parecia não ter sofrido nenhuma modificação tão drástica.

Aproximei-me dela e examinei, com maior cuidado e confirmei que aparentemente não sofrera nada, estava da mesma forma que a conhecia, apesar to tempo. Abracei-a e disse que ainda estava tudo bem comigo, e expressei a felicidade de nos trazerem para esse abrigo.

Ela me olhou com olhos interrogadores, e me perguntou a que abrigo eu me referia. Eu expliquei sobre as mutações, e que aparentemente se permanecêssemos naquele lugar estaríamos seguros. Ela me olhou com um semblante baixo, me deu um beijo na testa, como fazia quando éramos crianças e disse que ficaria tudo bem, pediu para que descansasse que logo ela voltaria. Sorriu e saiu, fiquei observando-a se afastando enquanto a porta se fechava e a luz diminuía.

-- Sempre foi tão inteligente – disse a moça a respeito do homem que acabara de deixar a sós no quarto branco e acolchoado – Por que diabos a vida nos prega essas peças? Era apenas um homem simples, seu único defeito era querer saber de tudo, essa curiosidade foi seu fim.

-- Essas coisas são assim, senhora. Já vi acontecer o mesmo com muitas pessoas. Talvez essa gana de querer saber sempre mais, o tenha levado ao atual estado de delírio. Afinal não é fácil entender certas coisas do nosso mundo, principalmente num país como nosso, em que se tem exemplos dos mais pecaminosos casos de egoísmo político, de manipulação da massa de forma cada vez mais violenta, de guerras e destruições causadas apenas pela ambição de poucos. Num mundo onde um pedaço de papel vale mais que a vida e os sonhos de um homem, qualquer um pode enlouquecer. Talvez sua mente tenha realmente sucumbido ante a essa fera vociferante. – Falou o enfermeiro enquanto conferia a assinatura, olhou-a sorrindo um sorriso amarelo, disse que estava tudo certo e agradeceu.

A mulher o olhou com olhos distantes, e sem brilho, sorriu como pode e saiu sem olhar para trás.

Well Calcagno
Enviado por Well Calcagno em 06/02/2013
Reeditado em 08/08/2013
Código do texto: T4126921
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