Pedro e os Sinais

Pedro não acreditava em Deus.

Sua descrença não estava baseada em qualquer tratado filosófico, embora na sua adolescência tivesse lido Jean Paul Sartre e Albert Camus, mas naquele sentimento que abomina supor que nossos desígnios pudessem ser conduzidos por uma força superior.

A existência de Deus, pensava ele, era uma força repressora necessária, coadjuvante do equilíbrio social.

Além disso, a presença de Deus funcionava como um alívio aos enfermos e esperança às pessoas desafortunadas, propiciando que pudessem suportar suas existências miseráveis e desgraçadas.

Pedro não conseguia acreditar em Deus.

Ao contrário. Enojava a maneira como os ditos pastores das igrejas pentecostais exploravam os incautos e, em nome de Deus, os extorquiam.

Assistia na televisão um que dizia:

“Irmãos, vocês vão receber um boleto bancário e vocês mesmos devem preencher o valor que pretendem contribuir.

Se quiserem doar dez reais, preencham dez reais; se quiserem doar cinquenta reais, preencham cinquenta reais; se quiserem doar quinhentos reais – aleluia! – preencham quinhentos reais.”

Igrejas dessa natureza, para Pedro, eram nada mais do que palestras motivacionais, como diversos programas de neurolinguística espalhados pelo mundo.

Tinha um certo respeito pelas filosofias orientais, notadamente o Budismo, sem aprofundar-se a respeito.

Também respeitava o espiritismo, muito mais pelo comportamento pouco persuasivo de seus adeptos, do que pela doutrina.

Pedro era um conceituado engenheiro, com uma invejável posição social, apreciador dos prazeres que a vida oferece.

Solteiro, morador de um flat em São Paulo, na Rua Bela Cintra, na região da Avenida Paulista era frequentador assíduo de bons restaurantes e casas noturnas.

Gostava de jantar no Terraço Itália, que lhe oferecia a melhor vista da cidade de São Paulo e que, para ele, era melhor do que a vista de Paris, da Torre Eiffel. A Torre Eiffel era bonita vista de baixo, mas Paris, vista de cima, era uma cidade muito sem graça, com todos os telhadinhos cinzas das casinhas iguais.

Há quem diga que essa observação de Pedro é uma heresia, mas ele amava São Paulo.

Era uma sexta-feira e Pedro, como rotineiramente fazia, tomava um Black Label com Club Soda e gelo no piano bar do Terraço Itália, antevendo o que a noite prometia, em uma das boates da Nestor Pestana.

Reduto de inúmeras boates, Pedro costumava frequentar a Kilt.

As garotas adoravam Pedro, que além de ser mão aberta era um excelente amante.

Mas aquela noite seria diferente para Pedro.

Ainda no restaurante, começou a cair uma tempestade monstruosa.

Laminas de água cortavam os céus e relampejava incessantemente. Os trovões eram contínuos e, com o perdão do paradoxo, Pedro imaginou tratar-se de um novo Dilúvio chegando.

Evidente que esse pensamento foi acompanhado de sonoras gargalhadas.

Mas após o último relâmpago, as luzes se apagaram. A energia do prédio acabou.

Pedro esperou alguns instantes para que o gerador funcionasse e pudesse descer de elevador.

Mas o gerador não estava funcionando. Pedro foi obrigado a descer os quarenta e quatro andares do Edifício Itália, a pé.

Ao chegar no térreo, Pedro reparou que não havia ninguém na rua.

A chuva havia parado, continuava escuro, mas as ruas estavam totalmente desertas.

Eram duas horas da madrugada.

Naquele horário, aquela região estava infestada de pessoas.

Prostitutas e frequentadores das boates da Nestor Pestana. Moradores do Edifício COPAN, pessoas saindo das baladas e indo para a Love Story. Travestis na Rego Freitas, consumidores de crack, barracas de bebidas na rua.

Ninguém.

Não havia ninguém na rua. Nenhum carro.

Pedro caminhou até a Rua Augusta, que também é conhecida por suas inúmeras casas noturnas, saunas, bares.

Ninguém.

Pedro começou ficar desesperado.

A cidade de São Paulo parecia um cenário pós-apocalíptico.

Pela primeira vez, desde que era criança, Pedro começou a sentir medo.

Lembrou-se quando tinha cinco anos de idade e estava na Praia Grande, que na época era bastante deserta.

Voltava para o apartamento do seu avô, com sua irmã, quando se deparou com um cachorro enorme.

Talvez o cachorro não fosse tão enorme assim, mas para uma criança de cinco anos de idade, aquele cachorro parecia um dinossauro.

O cachorro mostrava os dentes e rosnava, amedrontando-lhe.

Nisso surgiu um rapaz que devia ser o dono do cão, o segurou pela coleira e os tranquilizou, dizendo que podiam passar.

Assim que andaram uns dez metros, o rapaz soltou o cachorro que começou a correr na direção deles

Pedro correu.

Com o coração acelerado, com medo, correu desesperadamente, sem sequer se preocupar com sua irmã.

Só olhou para trás quando parou de ouvir os latidos do cão, mas sua irmã estava logo atrás dele.

Pedro sentiu naquele dia muito medo.

Também sentiu muito medo quando teve caxumba.

Devia estar com uma febre de quarenta graus e estava no mesmo apartamento do seu avô, na Praia Grande.

Havia um varal dentro do quarto, com várias roupas penduradas.

No escuro essas roupas pareciam fantasmas. Pedro, delirando de febre, morria de medo dos fantasmas.

Quando a febre passou e descobriu que os fantasmas nada mais eram do que roupas penduradas no varal, talvez Pedro tenha começado a duvidar da existência de Deus.

Mas naquela noite, Pedro voltava a ter medo.

Nas ruas escuras e vazias de São Paulo, Pedro avistou uma menina.

Andou em direção dela e percebeu que ela carregava um tabuleiro com balas, chocolates, pirulitos...

“Tio, compra uma bala.”

“Eu compro sim, mas só se você me responder onde estão todas as outras pessoas.”

“Não sei tio.”

Pedro colocou a mão na testa e tentou racionalizar. A menina devia ter uns nove anos de idade. Estava com uma camiseta surrada, uma sainha velha e sandálias havaianas. Mas não parecia suja. Ao contrário, exalava um cheiro de sabonete barato.

Os cabelos eram loiros e estavam amarrados.

Pedro perguntou então:

“Quem é você?”

“Na verdade, tio, eu estou lhe vendendo uma passagem para o céu.”

Que bobagem! Pensou.

“Como é o seu nome?” Ignorando a observação da menina.

Mas a menina também ignorou a sua pergunta.

“No meu tabuleiro tenho 96 balas, 48 chocolates e 24 pirulitos. Preciso vender todos, senão eu não posso voltar para a casa.”

“Menina, você está me confundindo.”

“Há coisas cuja compreensão está fora do alcance da nossa razão. Mas nem tudo que está fora do alcance da nossa razão deve ser tido como inexistente.”

“O que você quer dizer com isso?”

“Eu quero dizer que você mantém sua vida numa zona de conforto, adaptando sua crença ao seu comportamento. Ninguém é efetivamente descrente. Você acredita naquilo que lhe é conveniente.”

“Mas qual a relevância disso” perguntou Pedro “eu não faço mal para ninguém. Levo minha vida sem incomodar ninguém. Pago minhas contas, impostos; faço caridades; faço as pessoas felizes, cumpro as Leis. Qual o meu pecado? Não acreditar em Deus?”

Nesse instante a menina começou a chorar e saiu correndo.

Pedro começou ouvir uma sirene.

Fechou os olhos e quando abriu estava dentro de uma ambulância.

Observou dois paramédicos, um deles com um desfibrilador em seu peito.

Pedro sentiu um cheiro de queimado e percebeu que havia sido atingido por um raio, sofrido um ataque cardíaco e queimaduras.

Ouviu os médicos comentarem sobre a gravidade de sua situação.

Pedro começou a sorrir.

Por um instante compreendeu o significado da existência e compreendeu que o importante é viver com retidão.

A relevância de sua existência poderia ser resumida no seu comportamento íntegro; na sua contribuição com o bem estar das pessoas; agindo com honestidade, com generosidade.

A vida de Pedro foi assim.

Nunca fez mal a qualquer pessoa.

Naquela ambulância, Pedro morreu.

Sem acreditar em Deus.

WALTER CORDEIRO
Enviado por WALTER CORDEIRO em 05/02/2013
Reeditado em 13/11/2015
Código do texto: T4124599
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