O PUÇÁ DO CARA PEÇA (A PEÇA DA CARAPUÇA)            
          
                                   Introito
 
 Na República de Bercesplêndido (Terra do Sempre) vivia uma mulher muito trabalhadeira, trabalhadeira de roça, que, pelas circunstâncias da vida, nunca se casou, mas teve filhos em profusão. 
 Apesar da condição de mãe solteira, jamais deixou a peteca cair. Os filhos iam empencando em seus tronco e membros, como jabuticaba em jabuticabeira, e ela se virava:
  ..."ensacava" o bebê mais novo nuns amarrados a um lado do corpo, do outro lado levava um maiorzinho no braço livre, uns terceiro e quarto iam de mãos agarradas à saia de muito pano (justamente para terem onde pegar) e os restantes, de pouco mais idade, ficavam na casinhola paupérrima, pois desde cedo iam sendo adestrados na prática de tarefas menores, sabendo até assoar nariz, para não ficarem com eles encatarrados e sujos.
 E lá ia, a mulher, para as tarefas de lavadeira, subordinada diretamente à patroa do patrão.
 Ela se desdobrava. Quando chegava de volta tinha que preparar as refeições (da noite, da manhã seguinte, do almoço seguinte),  dar banho nos filhos menores, assessorar os banhos dos maiores, lavar panelas, roupinhas, penicos, e praticar quantas coisinhas ainda fossem necessárias. 
 ...(Depois do nascimento do último filho, nas "coisinhas necessárias" não mais se incluia o ato de deitar-se e deixar-se envolver pela basófia dos tritões que de quando em quando lhe apareciam, prometiam-lhe amor eterno, e a  deixavam logo em seguida, sozinha, com a colheita agarrada no corrico, não  ficando, os canalhas, com os peixinhos pescados nos momentos de sofreguidão à luz de lamparina pendurada na travessa do telhado). 
 Como a mulher conseguia dar conta de todas as obrigações, ninguém sabia. Como conseguia pernoitar, com aquela filharada, naquela cabana de pau a pique, também ninguém sabia. Sabiam apenas que madrugava, para chegar cedo ao local de trabalho - a sede da fazenda. 
 Diga-se que a patroa não era nenhuma megera. Dava apoio suficiente para que a lavadeira se mantivesse em pé. Apoio ínfimo, mas, constante, tal como se lê em certos cartõezinhos de Natal: "De: mulher relativamente abastada" (...) "Para: mulher mais necessitada"...
 
...- já sendo isto uma grande prova de consideração pelo fato de ela - a patroa -, esposa submissa, não ter, ela própria, tanta autonomia de voo, ou seja: era um teco-teco, se comparada ao supersônico marido boieiro, vaqueiro, avestruzeiro, canavieiro, etecetereiro, e, acima de tudo, machão, daqueles que chegam bosteados, dos pastos, e gritam: "- Mariquinha, vem me tirar as botas!"   
  (...)
  Nove filhos, a pobre pariu;
  ...nove, a pobre criou: 
  ...quatro meninos/homens, 
  ...cinco meninas/mulheres. 
          ...(Tem que ser dito assim, bem explicadinho, porque depois dos doze, treze anos de idade, meninos e meninas já tinham plena capacidade produtiva e reprodutiva; portanto, eram homens e mulheres - se não prontinhos, quase. Nessas idades, os mais velhos já a ajudavam bastante; entretanto,  para a mãe, ainda eram crianças que precisavam de orientação. Assim era.) 
 ...E assim foram todos crescendo e pegando no cabo da enxada. Aliás: todos, não!... 
 ...Porque o último, o caçula, achava que não havia nascido para tanto cansaço.
 (...)
 Manhoso, remanchador, Caçula (apelido ganho porque sempre ouviu sua mãe dizer: "...é  meu caçula", e ele entendeu ser este o seu nome) fazia corpo mole para todo serviço que exigisse esforço. Enquanto "de menor" ninguém dava muita importância ao fato - exceto a genitora, pessoa que se esfolava, que fazia das tripas coração para sobreviver, e que sempre o advertia: "- O que q'ocê qué sê na vida, muleque? Num qué estudá, num qué trabaiá... Óia seus irmão, tudo trabaiando! O patrão vai metê os pé no seu trasero, num demora! Num qué fazê nada, ocê! Tá ficano um estrupício, Caçula!" - temendo, com razão, pelo futuro do filho indolente e preguiçoso.
  O patrão atazanava-a; e só não meteu os pés no coxão mole do indivíduo porque a patroa, defensora incondicional da fiel lavadeira, sempre arranjava os necessários panos quentes para contornar a situação; depois, porque ele (o patrão) percebeu que o matreiro tinha "vocação" para alguma coisa, e essa coisa lhe interessava "cultivar". Já, então, o moleque atingira idade de andar por conta do à toa, na cidadezinha próxima; e aos fins de semana enturmava-se com os jogadores-de-conversa-fora, enfronhando-se nos assuntos vigentes, quando se dava ares de importante, expressando-se como se fosse o porta-voz do fazendeiro - "coronel" com bom número de eleitores que trazia à força de cabresto curto, herança de pai e avô.  
 Era tocar em política, e Caçula acendia! Queria mesmo era ser político. 
 ...Percebida essa "queda", o patrão resolveu cevá-lo (pois, se a esposa não lhe dera filho homem, ele teria que preparar alguém para defender suas causas e de outros tantos iguais). 
 Começou a "dar milho ao bode",  instruindo-o em patranhas e barganhas. Outras "ilustrações", afora estas, para que? - não seriam necessárias!... Ficasse apenas nos soletrados, já estava muito bom.
 (...)
 Resumindo (para não se navegar doravante em mares estranhos, só por poucos navegáveis): fiquem todos sabendo que a carreira política do indivíduo foi tão meteórica e cheia de meteorismos que se resolveu aqui relatá-la compactada numa peça teatral em oito atos;  mas tão curtos que mereceriam registro no "Guiness Book", não fosse a quase certeza de lá existir alguma peça do tipo "1-Veni, 2-Vidi, 3-Vici" - que melhor se coadunaria ao "curriculum vitae", à "vida pregressa" , enfim, à ideologia do esperto Caçula.
          
                                    *  *  *

                                    A Peça

 (No palco sombroso, um só ator, realçado por foco de meia-luz, enevoado. Voz em off,  representando a mãe preocupada com o futuro do filho.)

                                     Ato I:

  A voz:         - Meo fíi, o que q'ocê qué sê?...
             
  O filho:        - Valei-me, Virge Santissa!
                      Valei-me, meo Criadô!
                      Cosa que me infetiça
                      É me virá V'readô!

                                    
Ato II:  

  A voz:         - Meo fíi, o que q'ocê qué sê?...

 
O filho:        - Troxe mútio aprendido:
                      "Ninguém no mundo é perfêto!"
                      Tô pulano de partido,
                      Quer' agora sê Prefêto!


                                     Ato III:

  A voz:         - Meo fíi, o que q'ocê qué sê?...

 
O filho:        - Estudei o "enrolando",
                       Linguajar mais apurado.
                       No momento vou tentando   
                       Ser famoso Deputado.


                                     Ato IV:

  A voz:        - Meo fíi, o que q'ocê qué sê?...

  O filho:       - Quero ainda ser do povo
                       (Do povo, mas sem a dor!)
                       Quero me sentar no ovo, 
                       No banco de Senador.

                                    
Ato V:

  A voz:        - Meo fíi, o que q'ocê qué sê?...

  O filho:       - Os bobos não têm lembrança
                     Daquilo que não se faz.
                     Eu, aqui, na Governança,
                     Vou fazer a "minha"... paz!


                                     Ato VI:        

  A voz:        - Meo fíi, o que q'ocê qué sê?...

  O filho:       - O tempo foi me trajando
                     De economista sinistro.
                     Estou, hoje, me empossando
                     Nesta "Fazenda": Ministro!
 

                                    Ato VII:

  A voz:        - Meo fíi, o que q'ocê...

  O filho:       - Sossegue, mamãe querida!
                     Seu filho foi previdente:
                     De tanto aprontar na vida
                     Agora é PRESIDENTE!


                                    Ato VIII:

  A voz:        - Meo fíi!!!... Meo fíi!!!...

  O filho:       - Mamãe!!!... Mamãe!!!...

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 (Cai o pano).

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 (Dedicado ao meu amigo, Sr. Edmo Souza Campos.)


Fev.01, 2013