Semente e Fruto.
A noite estava bela, resfriada por brisa carinhosa e suave. O céu parecia mais uma grande estrela colorida exalando um perfume iluminado entre o chão perigoso e a lua inocente. Era uma noite de verão como tantas outras que enchem a cidade grande, repleta de violência. Era só olhar e admirar aquele céu para saber que a vida era um bem importantíssimo.
Os pais são meros espectadores desse lindo palco perigoso. Nossas preocupações ganham pernas na espera tardia e angustiante ante o abrir de portas e as olhadelas em janelas confidentes de nossos desesperos. Meu filho sempre saía e retornava antes das onze da noite e nada lhe acontecia, apesar de o toque do telefone assustar-me tanto, como se prenunciasse algo de desastroso, quando o ouvia.
Nesse dia fatídico ele, como que adivinhando algo, saiu mais tarde. O tempo que conversamos foi maior que os outros. Alisei sua cabeça como se o quisesse dentro de casa, esquecido das ruas. Olhei-o passivamente como que esperando dele alguma palavra incomum, talvez. Meus ouvidos pediam, clamavam, ao não ouvirem as palavras que, saindo de sua boca, concordassem com os meus pressentimentos de mãe. Mas ele saiu. Ele e três amigos de infância. Não sei para onde foram. Só sei que seus destinos os levaram a algum lugar onde havia divertimento.
A tecnologia moderna traz benefícios enormes para a humanidade. Ai de mim se não tivesse podido dar a Raul um telefone celular para, ligando sempre e repetidamente, acompanhar seus passos. Ligava para ele tantas vezes quanto minha angustiante espera exigisse. Quando vi que já passava das dez e meia, liguei, obedecendo a essa rotina que tanto o incomodava.
_Alô.
_É você, mãe?
_E aí, já estão de volta?
_Demorarei, mais meia hora, hoje.
_Por quê?
_Aqui tá bom, mama.
_Sua casa é melhor. Lembre-se das outras noites em que você se divertirá. Já é tarde, venha! Só dormirei quando você voltar!
_Mais trintazinho está bem?
_Que jeito? Esses trinta me valerão por dez horas!
_Dessa maneira liguei para ele por mais duas vezes. O tempo de seu retorno driblou o meu de espera e era quase uma da madrugada quando liguei pela última vez. O telefone chamou muito. Ninguém atendeu. Senti que algo acontecera com eles. Apavorei-me. Após várias tentativas, na última dada, ouvi uma voz estranha do outro lado da linha:
_Quem é?
_Eu é que pergunto, senhor, com quem falo?
_Houve um acidente!
_Com meu filho?
_Dos quatro, só um morreu.
_E o nome da vítima fatal?
_Ainda não sei, minha senhora. Chegamos ao local agora mesmo.
Lembro-me de que pus um vestido por sobre a camisola e, sem me lembrar que no prédio havia elevador, desci as escadas dos quatro vãos nos pulos do meu desespero. Apanhei o carro na garagem do subsolo, acionei sua ignição e saí como uma lança desavisada de tudo. E fui. Não me importava a cor dos sinais dos semáforos ou o movimento dos raríssimos pedestres que vi àquela hora, madrugada já alta. São Paulo estava calma como se o progresso houvesse adormecido por algumas horas. Ouvia-se o barulho de sinais dos carros de patrulha militar e, aqui e acolá, um estampido seco avisava um disparo irresponsável, dado por algum bandido, confrontando-se sabia-se lá com quem e por quê.
Quando me achei à frente do hospital do pronto socorro, dirigi-me à recepção. Informaram-me a quem deveria procurar para saber do desfecho final. Vi Marcos e me alegrei. Depois, de cócoras no corredor do primeiro pavilhão, estava Sérgio, chorando. Alegrei-me. O próximo a encontrar seria o meu filho amado. Achei Torquato. Pronto. Raul estava vivo, sim. Continuei a construir passos apressados. Vencidos os dois intermináveis corredores barulhentos do hospital, não o encontrei e meu desespero me acordou. Lembro-me de que chorei diminuindo os mesmos passos que há pouco eram de esperança. Parei no vértice azulejado do último corredor e, quando olhei para trás, os três sobreviventes vinham abraçados em minha direção. Quando indaguei por meu filho, as respostas foram vazias e tristes. Todos eles falaram com seus olhares. Meu filho estava morto! Sem que pronunciassem uma só palavra, ouvi seus discursos repletos de desesperança. Pensei então: como me era mais fácil alimentar aquela velha preocupação diária à espera dele. Meu medo sempre acabava quando ele retornava. Íamos dormir e no dia seguinte tudo recomeçava.
Raul era o meu único filho. Carregando a cruz de mãe solteira, cruzei este país, vindo do Acre, até estabelecer-me nesta selva de pedras e me neurotizar à espera das balas perdidas ou do susto do assalto relâmpago do meio-dia a que tanto assisti. Driblei o medo e, quando parecia que estava vencendo, meu lindo fruto, da única semente que havia germinado dentro de mim, murchou. Agora, árvore velha e sem frutos, resta-me regar outros jardins para esquecer a única flor que brotou do meu. Sufoquei minhas lágrimas e parti à luta. Hoje tenho muitos botões em que mexo todos os dias na terra frouxa dos inúmeros jardins de miséria que essa cidade oferece-me todos os dias. Consigo retirar deles verdadeiras preciosidades. A única coisa que ainda me assusta é não ter um teto próprio onde possa pousar despreocupada no fim da velhice que já me acena com força. Meu salário de fome, que não cobre nem minhas despesas básicas, dá-me insônias. Não sei onde devo achar a dignidade e a cidadania de que tanto ouço falar por aqui.
No lar São Germano, eu trato de quase uma centena de ex-viciados. Vejo Raul vivo nos olhos de todos eles. São esses olhares catárticos que me fazem resistir e amá-los tão profundamente, como jamais amei ninguém. Se não venci com meu único fruto, tenho a satisfação de fazê-lo nas muitas sementes alheias desse grande jardim público que busquei com a minha dor de mãe perdedora, solitária e triste. Dentro de mim, Raul nasce todos os dias quando acordo, abro a cortina da janela do meu pequenino quarto e, olhando São Paulo garoando graças para tantos miseráveis, sinto uma vontade imensa de adubar com o meu coração esse grande jardim que vejo, acenando para mim, como se precisasse dos instrumentos de minha alma solícita. Sou caçadora do fracasso alheio. Conserto-o com o que me dá a minha dor de saudade, de lágrimas, mas jamais de desesperança ou de egoísmo. Os tristes e solitários fins das madrugadas pelas quais passeio em todas as noites são as sementes que o destino quis que viessem para os meus braços de mãe sem semente, mas cheia de frutos saudáveis e doces, embora antes apodrecidos à frente de tantas almas desajardinadas e carentes que gostam de habitar cidades grandes