Entre o céu e o inferno.

Vi-o descer as escadas como se tivesse plumas aos pés. O silêncio misturava-se à escuridão da sala e apenas uma pequenina frecha de luar, pelo vitral do janelão, invadia deslicenciada o ambiente. O piano de cauda permanecia no mesmíssimo lugar de sempre.

Ele apanhou o trinco, abriu a porta e saiu calmamente; ainda olhou para trás, como se quisesse falar com a fachada do casarão que acabava de deixar. Havia tristeza em seu olhar.

Era o começo da Rua Belmonte. Além do casarão, só mais oito ou dez bangalôs alcançavam o fim de tudo. Em um bosque fechado findava o calçamento esburacado, cheio de mato. Um lugar esmo, longe da alegria.

Quando Mariza morreu, restaram apenas dona Eva e Leopoldo que tinha acabado de retornar do seminário, desistido da carreira sacerdotal, embora estivesse próximo do diaconato. Mas a

vida é mesmo cheia de altos e baixos e, como uma onda, leva e traz o que se põe a seu alcance, e nem tudo acontece conforme o esperado.

Normalmente às noites ele não saía. Costumava tocar lindas valsas ao piano e lá para as tantas ia dormir, depois de ter tragado uma meia dúzia de cálices, generosamente cheios, de licor de cassis, hábito herdado do seu avô, o comendador Napoleão, alma boa mas que não se sentia bem nem de ouvir falar no velho casarão. Sua história o incomodava.

Naquela noite chovia fino, sem vento e não se sentia o tempo frio. Mesmo assim ele saiu sob um grosso casaco de couro. Alguns minutos antes o telefone havia tocado. Ele desligou o aparelho mostrando-se irritadiço, como se não houvesse gostado da conversa que havia tido com alguém no outro lado da linha, ou se sentisse medo de algo.

Enfim chegou até a outra porta, destinatária dos seus passos. Bateu com a adaga na madeira do imenso portal e, como se alguém já o esperasse, uma das duas bandas se abriu quase fazendo trinta graus com seu corpo. Apesar de não tê-lo visto, sabia que estava ali. Adentrou e seus olhos se arregalaram demonstrando o espanto que lhe havia causado o rosto reconhecido à sombra das velas acesas e deixadas esquecidas por fiéis devotos de algum santo dos tantos que enfeitavam os altares da nave central da matriz.

_O que fazes aqui a essa hora?

_Esperando-o!

_Mas este nunca foi o seu lugar. Por que está aqui? Quem o permitiu ficar? Quem falou ao telefone comigo não foi você!

_Fui eu, sim, só que com a voz disfarçada.

_Como se mentir fosse justo!

_Para o fim a que viso, nada mais fiz do que apenas encantar o seu caminho até esta igreja.

_Se soubesse que era você quem aqui estava, juro, não teria vindo!

_Quantos cálices com cassis já bebeu nesta noite?

_Não lhe interessa! Mas diga, o que quer de mim?

_Tanta coisa boa...

_Este lugar não serve para esses tipos de ação. Respeite a nossa fé. Não basta o que já pecamos juntos?

_ Minha alma estava se contorcendo de dor!

_Não sou médico!

_Era uma dor diferente das outras comuns; doía-me a alma flertada por um desejo safado e forte. Ajude-me a dissipá-lo. Somos de carne e osso, não?

_Posso rezar ao seu lado e pedir a Jesus que o modifique. Você não pode continuar se enganando. Falta pouco tempo para sua ordenação!

_ Tenho uma fé forte, mas um desejo muito maior que a fé.

_ É o que o desendeusa. Vive muito próximo de um inferno que você mesmo criou. Até os outros, põe nele, como se não quisesse ser condenado sozinho.

_Que inferno doce! Não sei o porquê de suas brasas não serem gelos dóceis e doces e tão fáceis de ter-se sem nos deixar culpas. Amar, nenhum deus podia proibir; amar com as entranhas, com a voz, com as pernas, com os olhos, com tudo! É tão bom!

_Você necessita tratar-se. Está em lugar errado. Não se deve brincar com as coisas de Deus.

_Eu O respeito muito. Minha fé é linda; há apenas dentro de mim certos desejos vigorosos que não os controlo. Eu queria apenas um pedaço da noite para que eu pudesse amar sem ter que estar sendo acusado de qualquer pecado.

_Vou-me embora! O que você quer de mim, não posso dar.

_Se você for, ficarei apenas com os meus destroços. Não me servirá mais a vida.

_Eu abandonei o seminário por causa de seus desejos. Deixe-me em paz.

_Você não quer ser como o velho Napoleão. Ele era lindo. Desistiu de encontrar-se com a fantasia do casarão, quando já era velho,

impotente, inútil.

_Respeite a memória do meu avô; não está mais entre nós. Eu quero imitar a vontade que há dentro de mim. As causas mundanas não me interessam mais.

_Quando dona Eva morrer, você viverá de quê?

_Deus proverá!

_Você se engana aí do lado de fora. Este mundo de cá é mais generoso para quem o acata. Seus pecados, como os meus, jamais serão desmanchados, embora não nos leve a inferno nenhum.

_Cá onde estou é mais saudável. O piano e o licor é tudo o que quero da vida. Vovó me entende e, ao lado dela, é como se estivesse ao lado de mamãe.

_Se gostasse de seus pais, estaria com eles. Nem estão muito longe.

_Vou-me!

_Saiba que vou desistir de viver e por sua causa!

_Desaprenda a chantagear. Deixe o seminário e reencontre o mundo. Ser-lhe-á mais saudável.

_Aqui poderei ser apenas de você. Lá fora, resta-me a prostituição, um pecado ainda maior.

Ele puxou Leopoldo pelo braço, atirou-se a seu corpo e, em menos de dez minutos, cada um aceitou o outro sem diferença de desejos.

Mais tarde ainda, ele retornou. Abriu a porta, sentou-se ao piano, tocou Bach, até acordar a velha amiga que mais de que sua avó o entendia. Desceu os degraus da escadaria vagarosa, atendendo à idade avançada. Sorria como se tudo adivinhasse nos tragos de licor que Leopoldo dava e na satisfação que demonstrava ao tocar àquela hora.

_Esteve com ele, não foi?

Afirmou com a cabeça e sorriu. Diálogo franco...

_Meus passos me condenam, vovó, e só você me entende

_Não há condenação, meu filho, você simplesmente foi. Quis ir. Pronto!

_Mas quem me telefonou escondeu a voz real.

_Tenho ouvido esses falsos telefonemas que o levam até ele, ao menos duas vezes na semana. Você sempre vai sereno e retorna feliz. Sua vida aprecia esse gesto. Você tem querido fazê-lo.

_Vovó, por quê?

_Seu avô se envergonhava de viver ao meu lado. Eu gastava horas e horas para lhe dizer que não se autocondenasse. Depois eu tive a certeza de tudo, ele nunca mais pecou. Passou a viver entristecido como se algo forte lhe faltasse às mãos.

E tragou outro cálice cheio e sua cabeça bailava, combinando com o ritmo de seus dedos alisando o teclado, e a velha sentou-se para ouvi-lo e ouvir sua alma, doce, indecisa, desabrigada, ainda molhada pelos beijos do desejo forte que o enrodilhava como se os passos não pudessem mudar a estrada.

_Vai à missa hoje?

_Não, vó, hoje é ele o celebrante.

_Vá à outra igreja.

_Não. Hoje eu quero apenas tocar Bach..., sem me lembrar de mim! Celebrarei esta alegria dentro de minha alma para amanhã renascer menos triste. Quero ficar sozinho, hoje. Conversar com o meu mundo, refazer minhas ideias.