Foi culpa do vento

Em tempos nem tão distantes da memória, o Velho Chico era um rio bem diferente do que se mostra aos nossos olhos hoje. Nele, nas velhas e saudosas canoas de tolda, passeavam embarcados desde músicos, noivos a defuntos enrolados em redes ou nos átrios silenciosos dos féretros.

No silêncio da noite, quando a lua vinha doirar suas águas, dizem os mais velhos, o rio confabulava com suas margens chamando os encantos lendários, as visões de almas, os causos obscuros.

Nossas viagens de Traipu para Penedo eram feitas nessas velhas canoas de tolda. Eu e meus pais viajávamos contentes como se o rio nos propiciasse encanto aos nossos olhos.

Naquele sábado, cedinho, estávamos prontos para mais uma das nossas alegres viagens. Eu fui o primeiro a chegar à margem e pôr os pés na canoa. Com meu lugar garantido, pus-me a esperá-los, o que não demorou.

_Frederico, arrume-se para não tombar n’água: o Chico é o Chico. Tem força e encanto.

Papai ia logo à frente do canoeiro. Mamãe agarrada à madeira da canoa e ciente de que estava firme. O bico da canoa cortava a água do rio, mansamente, como se beijos de amor lhe desse. O vento ajudava, e a canoa deslizava depressa, barriga a barriga com o velho Chico, como se cioso de amor por seu casco estivesse.

Chegamos a Penedo ainda com o sol forte. Fomos direto ao que mais nos interessava no centro da cidade. A canoa ficou lá, solitária, talvez a namorar o rio ao balanço das ondas namoradeiras.

Almoçamos uma apetitosa moqueca de surubim; mamãe preferiu um suculento pirão de pitu; melamos as mãos, ela e eu, no quebrar das patas, na delícia da refeição.

Era hora de retornarmos. Subimos na canoa, acomodamos os pacotes e fomos levados até Porto Real do Colégio. Estivemos a visitar um irmão de papai, o tio Monsenhor Álvaro. Era costume de papai visitá-lo quando próximos àquela cidade passávamos.

E sem que pudéssemos fazer nada, o vento parou de soprar e a viagem daí até Traipu teve que ser interrompida. Tivemos que pernoitar em casa do tio. Na janta, uma sopa deliciosa e eu me atirei com gulodice a ela, comi até encher. Esqueci-me do meu problema crônico. Que problemão!

_Mãe, e aquilo? De noite?

_Reze para seu anjo da guarda que não vai acontecer aqui.

_Mãe...

Fomos dormir; eu mais cedo que meus velhos. Lá para

as tantas da madrugada achei de acordar. Entristecido, senti que algo havia me acontecido e fiquei apavorado. A enurese noturna havia me traído mais uma vez. Eu havia me ensopado e ensopado a rede de urina. Restava-me uma solidão envergonhada.

Levantei-me apressado, com o mundo ainda escuro, dobrei a rede, escondi-a sob uma marquesa colonial na sala e corri porta afora até encontrar a canoa a balançar ancorada nas águas rasas das margens do rio. Ali entrei e não saí mais até que o dia amanhecesse e pudéssemos viajar de volta até Traipu.

_Meu filho, que coisa feia você fez!

_Mãe..., eu tava todo...

_Mas estava em casa de seu tio e não haveria qualquer problema mais sério.

_É que minha calça estava molhada e eu envergonhado...

Só me alegrei quando o vento chegou forte e a canoa pôde levar-nos de volta. A viagem estava novamente viva. Comecei então a sentir falta de não ter feito o desjejum.Sentia muita fome.

_Tá com fome?

_Tô, pai!

_Beba a água do rio.

E entre gargalhadas chegamos à terra firme e descemos todos, cheios de pacotes e eu, de histórias para esquecer de contar a quem quer que fosse. Comi feito um condenado e não quis mais lembrar-me da viagem. Quando havia qualquer delas para fazer, eu procurava indagar ao canoeiro sobre o vento, se estava mais para bom do que para ruim. Mamãe me prevenia, papai me alertava,mas quem me resolvia tudo mesmo era o vento que,quando forte,sempre me trazia sorridente de volta para casa.