sinal
Aquele intermitente momento entre o ocre e o rubro. Ela, impetuosa, parou na rua, tendo de dar passo atrás para fugir dos carros que passavam da primeira à segunda. Ele, sobressaltado pelo susto de vê-la em meio ao tráfego já estava parado, sobre a calçada, há dois passos do meio fio. Em segurança absurda que não lhe privou de suar frio no momento em que o primeiro sinal sonoro repudiou a tentativa dela de apertar o passo entre uma e outra cor. Ela ruborizou, como a luz que piscara ordenando o desapego à pressa e a parada obrigatória. Ele reparou nos traços, na bolsa marrom, Louis Vuitton, que carregava em consonância perfeita com o traje social e o salto alto que lhe galgava às nuvens, como anjo, plena de garbo e beleza. Seus olhos ele não viu por debaixo dos óculos escuros que destoavam um pouco do formato do belo rosto dela, mas nada que lhe importasse. Reparou nas pérolas que ela trazia às orelhas e ao colo, tudo ordenado com a mais fiel das belezas humanas. Os dedos dourados em parte, e levemente morenos à outra, como deveria ser todo o corpo. A saia que ultrapassava as ancas dava-lhe um aspecto dirigente e o comprimento de dois dedos acima do joelho assentavam charme e elegância ímpar. A justeza que lhe exprimia as coxas, por certo e absoluto não lhe esgotava a graça, ao contrário, a multiplicava. Estonteante. Sob os efeitos da hipnose que aflige os admiradores da beleza foi flagrado, e ela pode perceber o fascínio que causara. Não era a primeira vez e nem seria a última, pois as belas mulheres sabem com exatidão o encantamento que provocam. Ele não pode parar de olhar e ela não ignorou, nem o faria; encarou e abriu um sorriso. O poder das belas mulheres resplandece. Faz calar, gritar, sofrer, vigiar, e como não poderia ser diferente, render. Rendido ao meio sorriso dos lábios carregados de batom vermelho que emolduravam uma linha do horizonte sem fim quis estar ao lado dela e ser-lhe fiel toda a vida. Ela, já acostumada com olhares indiscretos deu-se conta de que fora longe demais e que fez com que ele se apaixonasse perdidamente à primeira vista e à primeira distância. Nem ligou para seus trajes ou para o que carregava nas mãos, mas somente para o recato do olhar dos enamorados que revelam sob qualquer luz o sentimento pungente. Ele não poderia mais voltar atrás, por mais que quisesse nem ter nascido. A beleza de algumas deusas faz com que os homens se envergonhem de existir; ele estava absorto na leveza do gesto destro que ela colocava o cabelo liso atrás da orelha esquerda. Ela o fizera sem perceber, e sem dar conta de que isso, mais uma vez, suscitara paixões. As belas mulheres, em simples gestos, incitam vorazes desejos, até mesmo entre as outras mulheres. Agora ela já transmitia impaciência. O sinal não abriria nunca mais? Ele assim desejara; que aquele tempo ficasse guardado para a eternidade e para sempre, sem que houvesse qualquer possibilidade de perdê-la de vista. Ao mesmo tempo, já pressentia outros olhares para a mesma direção, pensamentos discrepantes, tantos ali a querendo também, mas, ninguém, por certo, a querendo tanto e do modo que ele ambicionava. Era amor, acima de tudo; daqueles marcados com o selo de “desde sempre e pra sempre”. Os outros e as outras não, eles e elas só desejavam a carne e, por certo, sequer haviam dado conta da superioridade daquele ser. Ela mordia o lábio inferior por pressa, ele por desejo; impressiona como duas ações idênticas do corpo podem ter causa e efeito contrários, ele encantou-se mais e ela achou que brincava de espelho. Ela sentiu-se incomodada e culpada; incomodada por aquele atrevimento, e culpada por saber que era a única causadora daquele mal de amor. O modo como ele mexeu no bolso, talvez tentando encontrar um papel, uma caneta, um cartão de visitas, um buquê de flores sem desviar o olhar vidrado, a fez agradecer aos céus por despontar paixões tão viscerais, mesmo que já lhe fosse um tédio comum. Ele planejou pará-la, no meio da travessia, mas considerou um equívoco, frente à pressa que ela aparentava. Ela desejou, intimamente, um aceno, um contato, afinal todos os apaixonados cruzavam com medo de dizer algo errado, como se o amor fosse um jogo de sete erros entre duas imagens perfeitamente iguais. E, talvez, por obra das interpretações, o amor seja mesmo um jogo de sete erros entre imagens perfeitamente iguais. O barulho dos motores foi ficando menor e já se podia ouvir o grunhido de freios mal regulados, frios, que paravam quase na linha horizontal das faixas verticais à frente. Algumas pessoas começaram a andar, lhe esbarraram, empurraram, xingaram, mas ele andava à passos lentos e trêmulos, ao encontro da luz. Ela despertou assim que o azul do seu traje e o amarelo do sol se misturaram, e em uma troca de passos altiva e determinada atravessou a rua, cruzou com ele, lançou-lhe um olhar indiferente que pode ver pela metade mais clara da lente dégradé do ray-ban, deixou-lhe o aroma cítrico e amadeirado do perfume que usava – o cheiro vicejante das mulheres belas – e deu-lhe às costas.
Ele tropeçou, bateu-se em outros, foi xingado novamente; olhou-a indo e percebeu que guardava a mesma beleza de quando a vira pela primeira e última vez.