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LIRIOS BRANCOS
Sempre fui muito arrogante, me achando dono da verdade, jamais permitindo erros, tanto de amigos como de funcionários em minha pequena empresa, que agora, já não mais a tinha. Pensava que ao criar uma redoma, me isolando, estaria a salvo da ignorância em geral, da mesquinharia, da pobreza de espírito. Nunca imaginei na ambiguidade dos sentidos do que se faz, ou das voltas que o mundo dá. Mas é sempre tempo de rever alguns conceitos.
Como já disse, já não tenho mais a minha pequena empresa. Tive que vender pra pagar dívidas acumuladas. Como não havia feito muitos amigos ao longo da vida, não obtive muita ajuda, e os poucos que tinha, sumiram tão rápido que nem sei explicar como se deu o afastamento ou o destino deles. Danem-se eles, ou melhor, boa sorte pra eles. Vendi também minha casa, não era grande coisa, mas era minha. O novo dono me deu quinze dias pra conseguir um novo local pra morar. Um antigo cliente, sabendo de minha situação, me ofereceu, a um preço razoável, dois cômodos nos fundos de sua casa. A princípio me causou estranheza aquela oferta, pelo fato de serem, aparentemente, bem de situação financeira. Fui então dar uma olhada nos cômodos e conhecer meus prováveis futuros senhorios.
Sou recebido no portão, pela irmã caçula de três irmãos. Ela diz saber quem eu sou e me convida a entrar sem dizer mais nada. À frente da casa um jardim com lírios brancos, nada mais. Sou conduzido ao escritório pela entrada através da sala da casa, com uma porta corrediça, onde já me aguardavam os outros dois irmãos, um dos quais eu já conhecia, Jeremias, sendo logo apresentado ao outro, Salomão. Sou muito bem recebido pelos dois gêmeos, mas notando logo alguns detalhes de postura e espontaneidade que os diferenciavam. Jeremias era mais espontâneo, às vezes desleixado com sua própria aparência. Salomão, ao contrário, alegre mas um pouco mais reservado, sempre de barba feita, camisa bem passada. Assim que entrei no escritório pude notar alguns quadros cujo tema era lírios brancos; o mesmo tema dos quadros que estavam na sala.
Sou convidado a me sentar em uma poltrona entre os dois. Bernadete, a irmã, me pergunta se eu aceitaria um café. De pronto aceitei. Ela se retira, deixando a porta aberta. Pude notar que ela se dirige a uma poltrona na sala, pega um livro e começa a ler. “E o café?” – pensei.
No escritório começamos a conversar amenidades, pra nos conhecermos melhor. Salomão falava com certa dificuldade, sendo às vezes difícil entender o que dizia, devido a um problema no pulmão, arfava entre uma palavra e outra. Em um certo momento olhei com curiosidade para um quadro ao lado, todo negro, com um lírio branco no canto inferior direito.
- Lindo, não é? – pergunta Salomão, procurando em mim alguma reação.
- Realmente, muito lindo... e intrigante. Parece meio solitário.
- É o preço que se paga pela perfeição.
- E pelo que pude perceber vocês adoram lírios.
- Lírios brancos. Mas eu preciso parar de plantar lírios brancos.
Fiz uma expressão de que não havia entendido. Jeremias interveio.
- Meu irmão é aficionado em lírios brancos.
- Mas eles são realmente lindos – eu disse.
- Sim, são lindíssimos, eu também acho. Mas meu irmão ultrapassa os limites. Eu gosto de lírios, mas gosto também de tulipas, rosas, do perfume de todas elas. Todas elas tem seu charme, todas são particularmente especiais e todas elas terão sempre um espaço em meu jardim. Digamos que eu seja mais flexível.
- Eu sempre achei que fosse mais fácil cuidar apenas de uma – retruca Salomão.
- Pois eu lhe digo, meu irmão: Agindo assim, não sei quem se torna escravo de quem. Não pode querer apossar-se do lírio branco a despeito dos outros lírios ou de qualquer outra flor. Todas elas merecem serem cultivadas e apreciadas, na medida e no tempo de cada uma. Algumas podem até serem eternas, mas jamais únicas.
- Sabe muito bem que já percebi isso. Em outros tempos também já gostei de rosas. Preferi os lírios de outras cores. Depois apenas lírios brancos. Hoje quero recuperar a alegria daqueles tempos.
- E vai ter, meu irmão, vai ter. Planta-se uma semente por vez e em breve terá um jardim de todas as cores e formas.
Eu intervim neste momento.
- É interessante como pessoas idênticas podem se desenvolver de forma diferente.
- Cada pessoa é única. No início, eu e Jeremias tínhamos amizades em comum, e comungávamos de uma alegria sem fim. Porém fui percebendo que a maioria se aproximava de nós com o intuito de conseguir algo em troca da amizade. Havia interesses que eu considerava sórdidos, que traíam o verdadeiro sentido da fraternidade. Fui me distanciando dessas pessoas. Como não conseguia distinguir os vários tipos de pessoas, fui me afastando de todas. Com o tempo fui me distanciando também de meu irmão. Eu e Jeremias passamos a ter amizades diferentes. Ele sempre se dava bem com outras pessoas, fazia amizade fácil; qualquer um poderia ser seu amigo. Já eu, sempre procurei selecionar minhas amizades. Procurei ocupar meu tempo com estudos, aprimorei meus conhecimentos, me tornei mais culto. Pra ser meu amigo tinha que andar certo com a lei. Tanto a lei dos homens como a lei de Deus. Seguindo esse pensar, acabei me afastando de todos, mantendo contato apenas com minha família. Adoeci e me vi só. Um homem culto, com recursos financeiros, porém vazio, sem cor, amargo.
- E nessas andanças, em busca de cura, alguém lhe disse, assim, do nada: “O lírio não deve ser sufocado, mas sim compartilhado. Compartilhado onde não há cor. Assim ele mostrará sua beleza”.
Neste momento, Sara entra na sala, trazendo o café. Olho para a sala e Bernadete continua concentrada em seu livro.
Jeremias me apresenta a moça.
- Bem, essa é Sara, minha sobrinha. Faz um café especial. E cozinha que é uma maravilha. Digo sempre que já está pronta pra se casar. Não é linda?
- Meu tio é um exagerado – diz ela.
- Não é exagero – eu disse. E após provar do café – e esse café está delicioso.
- Obrigada – responde meio sem jeito, saindo em seguida.
Jeremias volta ao assunto:
- Flores vêm e vão. Alguns coloridos ficam, outros não. O importante é que ao longo da vida se possa reconhecer o caminho trilhado pelo perfume deixado.
- E sempre é tempo de recomeçar – murmurei.
Conversamos mais um bom tempo. Mostraram-me os cômodos nos fundos. Sara me serviu alguns quitutes, acompanhado de sorrisos e olhares desviados.
Agora estou aqui arrumando tudo pra me mudar. Começar vida nova. Levo comigo, algumas mudas de jasmim, amor-perfeito, gloxínia... sementes pra um jardim colorido e perfumado.