K

Condenado. Condenado a prisão perpétua. K. reconhecia a justeza da pena. O direito tinha sido justo. Merecia passar o resto da vida numa prisão. Isso é justiça. Qual o sentido da existência? Nunca tinha pensado nisso. A vida tinha sido sempre qualquer coisa que não merecia ser pensada. Nem merecia ter sentido. Corria, a vida corria por si, estar vivo é estar vivo. Apenas isso. Nunca entendeu nada mais que o simples facto de existir por existir. Morrer, morrer é acabar, deixar de acordar, talvez. Pensar na vida era estranho e, por isso, pensar na morte era estranho. Agora, agora é diferente. Tudo parecia diferente. À sua mente ocorreram pensamentos que jamais foi capaz de fazer ocorrer à mente. Entre paredes, na solidão de si mesmo, na solidão de estar entre outros na solidão. E as palavras eram novas, estranhas, a dor, o sono, o sonho, o próprio corpo era o corpo de um estranho, estrangeiro. No rosto não se reconheceu, a identidade dilui-se ao fim do instante das horas ou dos dias. Mas havia um mundo, havia uma vida, a respiração indicava que algo respirava, as mãos, os braços, as pernas, o frio, a fome, a amargura, uma tristeza desconexa, o caos de existir estava presente como um peso, quase, quase insuportável. Havia essa vida. Um problema. Conseguida uma pequena lâmina, começou por cortar um dedo, depois o joelho, depois a face esquerda. Linhas de sangue, indeléveis e significativamente representativas da condição de ser sem identidade. Cada novo corte era um novo momento, digamos um novo movimento em direcção à abolição de si, ao fim de uma condição já sem identidade. A resolução do problema, da vida, resolução tão fácil da vida. O que somos? O que o outro faz do que somos? Isolado, por opção, mergulhado num tugúrio onde nenhuma voz se ouve, onde nenhum espelho reflecte qualquer imagem, o olhar metamorfoseia-se na observação de uma superfície longa, branca, infinita. Infinita, sem referências. A memória é um campo perdido no vazio. Nada mais existe na diluição dos limites. Nada mais existe. Nada mais existe por definição do vácuo. Não era K., quem era K.? Quem foi K.? Era nada e a morte é o nada, o nada absoluto. Linhas de sangue se multiplicam e, por certo, há nisso alguma beleza. Fim.

In "Contos em 8 Milímetros"