Anjo

ANJO

Edmilson Antunes Tavares - www.edmilsonantunes.com.br

Dez horas da manhã, na porta de dona Maria alguém de leve tocou. Era uma terça-feira de Junho. Dona Maria deixou as vasilhas no tanque e veio ver quem era. Abriu a porta e deparou-se com uma menina de três anos, um vestidinho azul rodado e cuidadosamente embainhado, com babados brancos, estava descalça e na mão esquerda um par de tamanquinhos pretos, com umas meias brancas dentro e ainda no cabelo um laço de fitas azuis com detalhes brancos. Não lhe disse nada, apenas estendeu-lhe a mão direita, a pequenina mão direita, em cuja palma não se cabia muito. Dona Maria perguntou-lhe:

— O que você quer?

Sem rodeio ou cerimônia, com a mão espalmada ao ar, respondeu:

— Comida.

— Cadê sua mãe?

— Não sei.

— E seu pai?

— Não sei.

— Você está com quem?

— Ninguém.

— Mas meu Deus! E de onde você veio?

Recolheu a mão e apontou para Leste.

— Lá.

Estendeu novamente a mão em direção a dona Maria. Esta balançou a cabeça negativamente como em desaprovação a tal situação, dizendo enquanto virava-se para dentro:

— Espere aí.

Foi até a cozinha e apanhou um pão que fizera no dia anterior, foi à gaveta e procurou a faca para dividi-lo. Pensou melhor enquanto, ainda sobravam quatro pães, iria dar aquele inteiro mesmo, não haveria de fazer-lhe falta. Quem iria chiar certamente seria o seu Adalberto, marido de dona Maria, ele repudiava a ideia de dar coisas a esses meninos que ficavam pedindo na rua, em sua grande maioria são filhos de pais ociosos, em idade e condições de saúde produtivas, vivendo porém às custas da caridade alheia, alavancada por esses pobres anjinhos, outrora esses pais nem têm necessidade de por os filhos para pedir, faziam-no por desrespeito à dignidade humana. Essas crianças acabariam sendo aprisionadas numa ideologia de incapacidade, viciadas a pedir em lugar de lutar para obter. Enfim, dobrar-se ao apelo delas era quase agir contra elas mesmas. No entanto, faça o bem, não olhe a quem, aquele que cede ao apelo de uma mão estendida não pode ser punido, não haveria de haver na consciência humana uma única lei que proibisse tal humano ato. Assim pensava dona Maria, e tudo isso refletiu enquanto voltava para a sala, em cujo interior algo atraiu a atenção da pequena menina, que até se assustou com achegada da dona Maria. Estendeu de volta a mão direita espalmada. Ainda que existisse lei, dona Maria não seria capaz de negar um pedaço de pão àquela criança.

Mal teve poder absoluto sobre o pão e levou-o à boca, com certa voracidade. Dona Maria esperou um obrigado ao menos, um “Deus a ajude”, mas não ouvindo foi fechando a porta. Tão logo o fez, a menina bateu novamente à porta, dona Maria, já quase á beira de perder a paciência, voltou a atendê-la. Os tamancos estavam no chão e a menina pediu-lhe desculpas:

— Desculpe-me!

Introduziu a mão esquerda num pequeno bolso no centro do vestido, à altura da barriga, tirou uma moeda e entregou-a a dona Maria. Era uma moeda de cinco centavos. Dona Maria analisou o valor da moeda e disse a menina:

—Espere um pouco.

Foi até seu quarto e, numa caixa de sapatos junto aos perfumes na penteadeira, colocou a moeda, apanhou de lá duas únicas moedas de real, voltou e entregou à menina. Esta colocou ambas as moedas no mesmo bolso – e único – do qual tirara a moeda de cinco centavos, abaixou-se, pegou novamente os tamancos, olhou para dona Maria, flexionou ligeiramente os joelhos, trazendo-os ao normal no mesmo instante, simultaneamente dizendo:

— Obrigada, senhora!

— Por nada!

A menina virou-se, atravessou a rua correndo, após ter observado ambos os lados. Foi para a esquina da rua que com aquela se fundia, lá havia uma parte de terreno sem qualquer construção, ali na esquina mesmo, com uma árvore ao fundo. A menina foi até a árvore, pôs os tamancos no chão e comeu o pão, isso em curto espaço de tempo. Após, limpou cuidadosamente os pés com as mãos e calçou as meias e os tamancos. Isso tudo sob atenta observação de dona Maria, que se encontrava estupefata ante tal cena. De repente lembrou-se de seus afazeres, voltou ao tanque rapidamente. A menina ficou embaixo da árvore, deixando a mente de dona Maria completamente entregue às suas ocupações domésticas.

Pouco após as onze horas da manhã chegaram os filhos de dona Maria da escola. Eram quatro: Roberto, de onze anos, Amaro, de nove, Fabrício de sete e Fernanda de seis. Daí a uma meia hora chegou seu Adalberto. Ele trabalhava puxando leite, era ajudante de caminhão, o homem com quem trabalhava, um tal Clodoaldo, tinha um caminhão e prestava serviços a um laticínio dali, ele mesmo dirigia e seu Adalberto era seu braço direito. Além de ajudante era quem fazia a manutenção do carro e ia sozinho quando o patrão não podia ir. Tão logo chegou, dona Maria relatou-lhe o ocorrido.

— O interessante Berto, é que ela, apesar de aparentar-se bastante abatida, é uma menina muito bem cuidada. Educada, com retoques de fineza, higiênica, limpinha, pele e cabelo bem tratados, como se fosse filha de gente rica.

— Duvido! Se fosse não estaria solta na rua.

Roberto refletiu:

— Talvez tenha fugido de casa.

— É Berto, Bertinho tem razão, talvez ela fugiu de casa.

— Uma menina de três anos?

— Uai, sei lá? Quem sabe o pai dela casou com outra e a madrasta é ruim?

— Ah! Põe o almoço ai logo e esquece essa menina.

Foram almoçar. Surgiram outros assuntos e o caso da menina foi esquecido. Contudo antes de terminarem ela surgiu junto ao muro da varanda. Não disse nada, pediu comida com os olhos. Dona Maria olhou para seu Adalberto, esse fez um gesto de ombros, isentando-se de opinar, ela voltou para a menina:

— Quer comer?

Balançou a cabeça positivamente.

— Então venha sentar-se à mesa, eu vou dar-lhe comida.

A menina transpôs o portão, dirigiu-se à pia, não tinha altura, olhou para dona Maria, esta havia compreendido sua intenção, veio, abriu a torneira e ergueu-a. Ela lavou as mãos com água e sabão. Secou-as na toalha e dirigiu-se à mesa. Dona Maria pôs-lhe a comida, recusou farinha, quis feijão, arroz, carne e salada. Demonstrou-se faminta, contudo, da maneira de manusear os talheres à forma de mastigar o alimento pareceu indissociável à uma boa educação. Tão logo fez sua refeição, fez o sinal da cruz e, olhando ao redor, disse obrigado, descendo os olhos. Seu Adalberto questionou-lhe:

— Qual o seu nome?

— Não sei.

— Como?! Você não sabe o seu nome?

Balançou a cabeça negativamente.

— E o seu pai, quem é o seu pai?

— Não sei.

— Você tem mãe?

— Também não sei.

— E de onde você veio você sabe?

Ela olhou como querendo posicionar-se, mais já havia se perdido no espaço, movimentou os ombros com desânimo, dizendo não saber. Dona Maria intercedeu:

— Eu já perguntei isso a ela, Berto, não adianta, se ela sabe de alguma coisa não quer dizer.

— Mas é muito estranho.

— Também acho.

— E você veio como?

— Como eu vim?

— É, como você chegou até aqui?

— Eu vim num carro.

— Que tipo de carro?

— Um... caminhão. Com um tanto de lata em cima, que fazia o maior barulho.

— Caminhão de leite, Maria. E você veio em cima junto com as latas que batiam ou dentro?

— Não, eu vim dentro.

— E qual era a cor do carro?

— Do carro grande?

— É, do carro que você veio.

— A cor?

— É, a cor, azul, amarelo, vermelho?

— A cor eu não sei.

— E o nome do homem que dirigia?

— Que homem?

— O que ficava girando o volante. Você sabe o que é o volante?

— Sei.

— E então, qual o nome dele?

— Não sei. Mais ele tem uma barbona!

— Ah, Luzimar. Ele passa aqui em seu Liontero, vai lá embaixo na fazenda Cristais do Mar e volta pelo Córrego da Baixa, e sai de volta aqui, no mesmo lugar, na fazenda de seu Liontero.

Fernanda veio entrando:

— Mãe, vou brincar lá fora.

— Hoje à tarde vou lá no Laticínio, Maria, terça, quinta e sábado ele esta lá à tarde.

— Então o problema está resolvido, hoje você decifra o mistério dessa menina.

— Deixa mãe – insistia Fernanda, puxando o vestido de dona Maria, que a esta hora estava recostada na pia.

— Vai menina, mais você volta suja de terra, ouviu?

— ‘Brigada mãe!

Saiu pulando. Ao portão parou, a boneca numa das mãos, estendeu a outra mão em direção à menina, com os dedos unidos, flexionados, num gesto de chamamento:

— Vem.

A menina, ávida por ir, saltou da cadeira num sorriso e o mais ligeiro possível acompanhou Fernanda.

Lá pelas três e meia da tarde seu Adalberto foi ao Laticínio. Era bastante conhecido lá, e não digo só de nome, por trabalhar lá, mas era “chegado” de todos, pois era onde trabalhava há quase dezesseis anos. Foi gritando o primeiro que viu tão logo chegou:

— Fala Tião!

— Oi, seu Berto! Boa tarde!

— Boa tarde! Cadê Luzimar?

— Está ali embaixo, consertando aquele caminhão azul.

— Deixe eu ir lá.

— Vai lá seu Berto.

Aproximou-se do caminhão azul, bateu na lataria da cabine enquanto se agachava. Luzimar estava embaixo, cumprimentou-o.

— E aí, Luzimar, o que está pegando aí?

— Oi seu Berto! O senhor está bem?

— Graças a Deus, e você?

— Tudo bem. Eu estou aqui vendo se dou um jeito nesse feixe de molas.

— Oh Luzimar, eu vim perguntar sobre uma menina que você deu carona hoje, de três a quatro anos, ela é filha de quem?

— Olhe, seu Berto, aquela menina é um mistério. O senhor está falando de uma bem arrumadinha, não é?

— É. Estava com um vestidinho azul, com um babado branco.

— Pois é essa aí mesmo, seu Berto. Eu peguei essa menina lá no último ponto, estava com uma tal Francisca, do Córrego Vermelho. Eu abri a porta para Francisca entrar, ela ficou perto, então eu a pus dentro do carro. Viemos conversando. Cá na frente eu perguntei Francisca quem era a tal garota, o que era dela, foi aí que ela me falou que nem conhecia. Segundo ela o seu irmão vinha trazendo-a para o ponto onde ela me esperava, na penúltima cancela para chegar no ponto essa menininha estava, tinha umas vacas no caminho e ela estava com medo, o irmão de Francisca perguntou se ela queria passar, ela disse sim, eles a trouxeram.

— Mas assim!? Sem nem saber quem era?

— Francisca achou que era filha de alguma pessoa que já tivesse conversado comigo para trazê-la, ia até perguntar-me, mas viu-me colocá-la no carro sem mais demora.

— Nossa! Que complicação!

— O pior é que fiquei preocupado, mais quando cheguei ali perto da sua casa, onde parei para uma mulher descer, a galinha dessa tal mulher escapuliu, eu tentei ajudar pegar e esqueci-me da menina, como já estava atrasado e preocupado com esse feixe de molas eu nem lembrei.

— Nossa! Você deve ter chegado tarde de lá, da outra linha sua, não é?

— Não, eu pedi o primeiro que apareceu aqui para ir buscar pra mim, fiquei com medo desse caminhão deixar-me na estrada.

Seu Adalberto ainda demorou um pouco mais ali, mas ficou preocupado quanto à menina. Em casa chegando relatou à esposa conforme se interara do assunto. Mal terminou de contar tudo e sua filha Fernanda chegou.

— Cadê a menina, Nandinha?

— Não sei, mãe.

— Menina sonsa, volta lá agora buscar aquela menina.

— Ah pai, ela sumiu tem horas.

Já com voz de choro e correndo para o lado da mãe, seu Adalberto saiu rápido, ainda perguntou:

— Onde estavam quando ela sumiu?

— Brincando de queimada perto da casa de Luiza.

Seu Adalberto procurou, mas não encontrou. Procurou informações por ali, mas ninguém soube informar, a menina tal como apareceu, sumiu. Seu Adalberto desarmou-se na poltrona desanimado.

— Menina misteriosa, Maria, parece fantasma, some aqui, aparece ali, desaparece de novo.

— Deixe de bobagem, Berto, ela deve ser é meio tolinha. Coitada, esta noite parece que vai fazer tanto frio.

— Vai ver a mãe dela a encontrou, gente – tentou amenizar Roberto.

— É, vai ver foi isso mesmo.

Disse dona Maria, com o olhar deixado pela varanda, não cria nessa possibilidade, mas esperava que fosse. A lembrança da menina foi ficando sonolenta, sonolenta... Espreguiçou-se por final e adormeceu, antes mesmo deles.

A casa de Luiza, a que Fernanda se referira, ficava nas proximidades da ponte de um pequeno córrego ali do bairro. A pequena garota havia descido junto à ponte, atraída por uma boneca que pairava à margem do leito. A menina desceu e, recolhendo a boneca, recostou-se junto à pilastra e ali ficou. Após brincar um pouco, juntou jornais velhos espalhados ali e adormeceu sobre eles. Aquela era a “casa”, ou, pode-se dizer abrigo, de Pedro cachaça. Pedro Cachaça era um bebum de aproximadamente quarenta e cinco anos, nunca se encontrava sóbrio, pois quando se recolhia em seu abrigo levava algum tanto de bebida e, logo que o sol surgia e o despertava, ele já se embriagava, de forma que as pessoas não o viam senão bêbado. Mas a história de Pedro Cachaça é emocionante. Há quinze anos Pedro tornou-se Pedro Cachaça, metamorfose para um estado precedente da morte.

Pedro era filho único de um fazendeiro, perdeu a mãe aos oito anos num acidente de carro, que também deixou seu pai paralítico. Desde cedo aprendeu a lidar com fazenda e passou a tomar conta das terras do pai. Aos dezesseis anos tombou o caminhão do seu pai com vários empregados da fazenda em cima. Morreram três e seu pai teve que vender parte das terras para indenizar as famílias das vitimas. Em decorrência do fato ele mudou-se para São Paulo. Lá ficou dois anos, conheceu e apaixonou-se por uma prostituta nordestina que lá trabalhava. Trouxe para morar com ele e seis meses depois ela teve um filho, uma menina, uma fotocopia dele de tão parecida. Denominaram-na de Pedrita, tamanha semelhança. Algum tempo depois perdeu seu pai para um câncer. Foi para a pequena fazenda (restara na verdade um sítio) e tentou recomeçar sua vida. Comprou uma casa na cidade quando a filha fez sete anos, para que a pequena Pedrita pudesse estudar. Mas naquele mesmo ano descobriram que ela estava com câncer. Foram mais de quatro anos de sofrimento, uma luta aparentemente leal, porque de um lado uma doença incurável, e do outro uma esperança invencível. Pedro, o garoto que recomeçava, um jovem fazendeiro ascendente, viu-se em dificuldade. Primeiro gastou o que tinha, depois vendeu o gado, depois a casa da cidade, depois o carro, então começou a endividar-se. Numa terça-feira um amigo veio trazer sua filha em casa, Pedrita, de Pedro, de pedra, de rocha, não parecia tão rocha. Expirou às três da tarde, às três e dez talvez, aos onze anos, quando a mãe, com o auxilio do pai, tentava sentá-la para dar-lhe água, pois reclamava de sede. Não bebeu a água.

Enterraram-na, na quarta de manhã. Na quinta-feira ele quis tentar recomeçar, foi ao encontro de seus credores. Devia realmente bastante, teria mesmo que vender parte de suas terras até porque não tinha mais nada do que pudesse desfazer-se. Vendeu a terra toda, o dinheiro que sobrasse compraria algum sitio em outro lugar. Iria sair dali, recomeçar significa zerar, partir do nada, morrer para voltar a viver; nascer de novo. Sexta-feira foi à cidade levar os documentos, vender burocrática e oficialmente. O comprar e seu maior credor pagou-lhe à vista a quantia que sobrepunha à divida, fez questão disso, ainda deu-lhe prazo de até sessenta dias para entregar a terra, pois entendia a situação difícil pela qual Pedro passava. Foi voltando para casa, já no fim da tarde, à pé ela estrada refletindo, pensando, fazendo contas. O dinheiro restante dava para comprar um sitio equivalente a três quartos do seu, iria mudar de cidade se possível, quando chegasse em casa, se a sua mulher estivesse fértil iria fecunda-la, não para substituir Pedrita, mas para ter forças, recuperar o ânimo. Chegou já escurecia. Um silêncio fúnebre envolvia a casa e o lugar inteiro. Girou pela porta da cozinha, foi em direção ao quarto da filha onde certamente estava a esposa, agarrada às roupas da filha. E realmente passara lá, havia retirado todas as roupas do guarda-roupa e jogado sobre a cama, mas não estava lá. Um cheiro de queimado fê-lo voltar à cozinha, mas nada se encontrava queimando. Foi ao quarto, agora já chamando por ela, nada. Pela janela, notou algo fumaçando um pouco longe, mas não a viu. A penumbra pouco a pouco cedia à escuridão total, impedindo-o de identificar o que ela teria posto para queimar. Segui rapidamente para lá. O que era fumegava, e o que fumegava se mexia, parecia tremer. Seu fôlego apresou-se, seu coração acelerou, suas pernas fraquejaram. Sua esposa não havia resistido, fraquejou no tempo da desgraça, jogou álcool no corpo e incendiou-se. Pedro socorreu-a, pois ainda estava viva.

Segunda-feira, dali a três dias, no bar do seu Antonio, na rua do cemitério, Pedro foi visto pela ultima vez sóbrio, às três ou quatro da tarde (alguns falam que era às cinco), tomando uma dose de cachaça ali no balcão. Olhando para o copo antes de beber, disse:

— Ela era a força com que contava para superar a morte da minha filha, agora preciso superar também a morte dela, não sei se vou conseguir.

Seu Antonio, o mesmo seu Antonio, dono do mesmo bar, no mesmo lugar, conta sempre essa história, bastando para isso ver Pedro Cachaça passar na rua quando tem alguém diferente dentro do bar. Agora Pedro Cachaça estava ali, debaixo de uma ponte. O local era bastante propicio, oculto aos olhos de muitos curiosos que passassem na rua. Ainda, o córrego entrava na cidade por ali, naquele ponto era completamente virgem dos dejetos da cidade.

Então amanheceu, aquela noite foi realmente gelada. Às cinco da manhã, quando seu Adalberto se levantou, Dona Maria lembrou-se da criança.

—Como estará a esta hora aquele pobre anjinho!

Não tão bem, mas nem por isso deixou de viver. A neblina desfez-se logo e o sol chegou despertando a pequena menina. Ela levantou-se dentre os jornais e pôs-se de fronte ao sol. Pedro acordou enquanto isso, encantou-se com a presença dela, a qual não notou no dia anterior quando chegou para dormir, ou talvez até tivesse visto, mas não era capaz de se lembrar. Ainda estava meio tonto, mas foi capaz de fazer-lhe as mesmas perguntas: Quem é você?, De onde veio?, Quem é seu pai? Sua mãe, etc., para as quais a menina tinha as mesmas respostas, ou melhor, não as tinha. Cessada suas perguntas foi a vez dela perguntar. Aproximou-se dele, que não se tinha ainda levantado, mas apenas o tórax soerguido, tendo o braço esquerdo apoiado no chão, ficando da mesma altura da menina. Ela olhou-lhe nos olhos, uns olhinhos de menina bem-cuidada (apesar do vestido já não está mais como no dia anterior), nos olhos de um homem sofrido, com barba debutante, quinze anos por fazer, tal qual o cabelo, já nos ombros, digno da adjetivação: trapo humano; nestes aqueles olhos, e ela perguntou-lhe com imensa ternura:

— Quer ser meu pai?

... (continua em www.edmilsonantunes.com.br/anjo_26.html).

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