Maria, sua mãe por quê?

MARIA, SUA SENHORA POR QUÊ?

Edmilson Antunes Tavares - www.edmilsonantunes.com.br

Eu nasci em uma família católica e habituei-me a chamar Maria de Nossa Senhora sem questionar. Quando eu tinha 25 anos consegui um emprego em outra cidade, distante da minha mais de 200 km. A dificuldade de ir para a minha cidade era grande, tinha que pegar um ônibus até o trevo, como eles chamavam, que era o entroncamento da estrada que ligava aquela cidade a uma rodovia, cerca de 24 km de estrada sem pavimentação, e lá esperar um outro ônibus. O maior problema é que os horários não coincidiam. O meu emprego era de técnico em informática, eu havia feito um curso de nível técnico.

Eu mudei-me num domingo de manhã, meu cunhado levou-me, um primo dele havia conseguido alugar uma pequena casa para mim. Saímos bem cedo, chegando lá por volta de nove horas da manhã. Descemos minhas coisas: uma cama, um mine guarda-roupa, de uma porta, um pequeno armário de cozinha, um fogão de quatro bocas, uma velha geladeira de 180 litros, que mãe me havia dado, e uma mesa dessas de bar, com duas cadeiras, e só. Ah! Sim, roupas. Descemos as coisas e ele partiu, eu fui arrumar mais ou menos a casa. Por volta de 11 horas eu saí no terreiro da casa, numa área de serviço que tinha, um homem cumprimentou-me do outro lado do muro, que era baixo, depois me questionou:

— Você é o nosso novo vizinho?

— Sou.

— E vai almoçar onde?

— Na verdade eu ainda nem pensei nisso, mas vou daqui a uns instantes aí na rua e como qualquer coisa, é bom que fico conhecendo um pouco mais a cidade.

— Deixa para conhecer a cidade depois. Almoça hoje aqui com a gente! Roda aí e vem cá, vou abrir a porta da sala lá para você.

— Não se incomode.

— Por favor, é bom a gente conhecer os vizinhos.

Cedi e fui. Ele era pastor de uma igreja evangélica pentecostal. À noite fui à missa. É costume os padres em algumas paróquias, no fim da missa, nessas épocas de férias, estávamos no mês de julho, convidar para ir à frente, no fim da missa, pessoas que são de outras cidades e que estão ali visitando, ou estão ali pela primeira vez. Só tinha eu. Final da missa eu sai lentamente, parei à porta e fiquei olhando a pracinha em frente. Era a primeira vez que deixava a minha cidade, não é fácil. O padre saiu pela lateral direita da igreja e ao passar em frente viu-me ali, parou um pouco e conversamos por uns cinco minutos. Disse-me por fim:

— Se precisar de alguma coisa pode procurar-me.

Assim tornei-me amigo dos dois: do padre e do pastor. O pastor Marcelo era uma pessoa muito boa, como nem eu nem ele tínhamos preconceito religioso tornamo-nos amigos mesmo, do fundo da cozinha. Igualmente o padre Jorge, um homem muito bom, nós dois éramos mais que pastor e ovelha, éramos amigos.

Pastor Marcelo volta e meia chamava-me para ir à sua igreja, nos cultos, sobretudo aos sábados. Eu ia muito. Chegou a querer converter-me, mas eu relutei, disse-lhe que estava bem decidido em termos de religião, depois de umas três tentativas não mais tocou no assunto.

Quando estava por fazer cinco anos em que eu estava lá aconteceu algo que mexeu profundamente em minha escolha religiosa. No domingo Jorge, o meu amigo padre, anunciou após a missa que o bispo havia solicitado que ele fosse pastorear outro rebanho, uma paróquia na periferia de Salvador, Um lugar com muita violência por sinal, fiquei triste porque era um grande amigo que iria partir. Na segunda-feira minha mãe mandou avisar que iria vir na outra segunda para ficar uma semana comigo. Pelo horário que ela sairia de minha cidade chegaria ao trevo da estrada próximo de meio dia, como eu não tinha carro nem carteira iria tentar conseguir um carro com motorista. Fui até o padre na quarta-feira:

— Jorge, você busca minha mãe para mim no trevo da estrada na segunda-feira?

Ele virou-se para mim e exclamou:

— Finalmente sua mãe vai vir aqui?

— Vai.

— Que bom! Vai dar tempo d’eu conhecê-la. Vou embora na segunda à tarde.

— Vai gostar dela, tenho certeza, é uma pessoa muito boa.

— Tenho certeza mesmo que vou gostar dela, tomara que ela goste de mim.

— Impossível não gostar, ser padre já lhe dá muitos pontos.

Tudo parecia naquela semana como nas demais, não foi. Sexta-feira Marcelo convidou-me para ir até a sua igreja para assistir uma apresentação de um coral que os estava visitando, eu aceitei. Foi muito bonito. Quando terminou eu sentei-me com Marcelo, a filha dele e uma amiga dela, ambas adolescentes, na faixa dos quinze anos. Daí a pouco o namorado da filha de Marcelo chegou chamando-a para ir até a mesa onde estavam seus pais, ela foi e ficamos eu, Marcelo e a jovem. Uns minutos depois Marcelo falou algo e eu exclamei:

— Minha Nossa Senhora!

A garota olhou para mim e falou:

— ‘Ta aí, uma pergunta que eu sempre quis fazer para os católicos: Maria é sua senhora por quê? Ela era uma mulher como eu, nasceu de outra mulher, filho de um homem, alimentava-se de comidas típicas da época, era só um ser humano.

Fiquei em silêncio por uns segundos, como esperando que ela falasse mais alguma coisa, mas na verdade estava sem palavras, exclamei:

— Nossa!

Ela imediatamente continuou:

— Percebeu? Você chamou por ela, estava sem palavras e clamou pelo nome dela. Jesus fala que não podemos ter dois senhores, você tem dois senhores, um do sexo masculino e outro do sexo feminino, um é Jesus, Nosso Senhor, o outro é uma mulher que se chamava Maria, como você administra isso?

— Olha, esta é uma questão muito complexa, jovem.

Marcelo interveio, colocando sua mão sobre a mão dela, como quem diz: “Chega, já deu o seu recado.”, posteriormente virou-se para mim e comentou:

— É bom de fato perguntar-se às vezes por certas coisas. Uma mulher que você nunca viu na vida mas certamente tem uma imagem dela na cabeceira da sua cama. Se quiser falar sobre isso, estarei à sua disposição, ali do seu lado.

Ele mudou de assunto mas a alfinetada dela causou uma ferida profunda. Fui para casa pensando nisso. Chegando em casa lá estava a imagem de Maria na cabeceira da minha cama, minha mãe quem me havia dado. Deitei-me e continuei pensando nas palavras da jovem. Dormi mal. No outro dia de manhã resolvi tirar a imagem de Maria da parede, não conseguia sentir-me mais à vontade com ela lá. Resolvi que queria ir ao culto de sábado, não sei por que sentia essa vontade, ao mesmo tempo sentia vontade de encontrar alguém que me dissesse por que Maria era essa pessoa que eu chamava de Senhora. Converter-me ao protestantismo era tão complicado! Minha mãe era católica fervorosa, iria opor-se radicalmente, melhor era ela nem ficar sabendo, e o pior é que ela estava vindo na segunda-feira.

Fui ao culto no sábado, Marcelo celebrou minha estadia na sua igreja. Terminado o culto fui para casa. No domingo resolvi ir até Jorge, afinal ninguém melhor que um padre para esclarecer tantas dúvidas. Estava para as comunidades rurais de manhã e só chegou à tarde. Por algum motivo não perguntei a ele como planejara, contei-lhe os questionamentos da amiga da filha de Marcelo e também as palavras deste, conclui dizendo:

— Isso levou-me a uma decisão: vou converter-me ao protestantismo.

Não me entendi, não sei por que disse aquilo, ainda não estava totalmente decidido. Jorge respirou fundo, olhou para o lado depois para o chão, finalmente para mim, respondeu:

— Bem, se essa é sua decisão, só posso torcer para que você cresça cada vez mais na sua fé. Por outro lado, já que você é evangélico agora, nada mais justo que você pedir ao pastor Marcelo para buscar sua mãe no trevo da estrada.

Dei um sorriso meio sem graça, acenei com a cabeça que concordava, ele completou:

— Se ele não puder de modo algum você vem aqui ou me liga que eu vou.

Sacudi novamente a cabeça e saí. Sinceramente, meus olhos encheram-se d’água, e foi de mágoa. Não fui à missa, no domingo à noite mesmo eu procurei Marcelo e conversei com ele, respondeu-me que sem problemas, ele iria sim buscar minha mãe no trevo. Fiquei aliviado, voltei para casa pensando que Jorge certamente pensara que Marcelo iria dar uma desculpa e não ir, então eu voltaria humilhado implorá-lo para socorrer-me, e certamente ficaria decepcionado com Marcelo e mudaria de idéia quanto a tornar-me evangélico. O tiro dele saiu pela culatra. Segunda minha mãe chegou, havia comentado disfarçadamente com Marcelo que minha mãe era uma católica fervorosa, graças à Deus ele não disse qualquer coisa sobre religião com ela. Segunda à tarde fui até Jorge, despedir-me. Ele foi logo perguntando, enquanto agasalhava as suas coisas no carro:

— E sua mãe, chegou bem?

— Chegou, por quê?

— Nada não, pensei que Marcelo não iria buscá-la, até deixei o carro do lado de fora da garagem esperando você ligar.

Fiquei visivelmente chateado com o comentário dele sobre Marcelo.

— Por que não iria?

— Se fosse uma amiga ou parente dele, mas buscar uma pessoa que ele nunca viu na vida?

Fiquei tão chateado, preferi nem falar nada, não queria discutir com ele no dia de sua despedida. Ele mudou rapidamente de assunto:

— Queria pedir um favor para você, pode ser?

Respondi “hum rum”, ainda meio travado, ele fazendo de conta que não havia nada de errado, aquilo ainda mais me irritava.

— Lá para onde eu vou, como já comentei até aqui na missa, é bastante violento, esse ano já assaltaram a paróquia que vou assumir e entraram na casa paroquial, que é onde eu vou morar, queria que você guardasse uma moldura que eu ganhei. Ela tem um valor sentimental muito grande para mim, é um quadro da mãe do meu melhor amigo, mas também tem valor financeiro, tem detalhes em ouro e pedras preciosas, e é isso que me dá medo. Você guarda para mim? Quando eu mudar de paróquia novamente volto buscá-lo.

Acenei com a cabeça que guardaria sim, ele foi dentro de casa e trouxe um quadro embrulhado em um jornal velho. Disse a ele que já ia, despedimo-nos e me fui. Cheguei em casa e joguei o quadro dentro do meu guarda-roupa, confesso que com certo desprezo, pensei nessa hora por que não disse a ele para dá-lo a uma das muitas beatas lá da paróquia. Minha mãe estava fazendo a janta quando cheguei, já eram mais de seis horas. Seis horas ela sempre fazia a tal oração do anjo dela, e quando os filhos estão dentro de casa ela sempre convida, eu não queria que ela soubesse da minha decisão mas não podia negar seu convite, caso estivesse em casa, o jeito foi fazer de tudo para não estar dentro de casa no momento da oração. Ela iria embora sábado, e sábado eu iria no culto da noite na igreja de Marcelo, iria aproximar-me do altar e dizer para ele: “Pastor, eu quero entregar meu coração para Jesus!”, já não podia resistir a esse desejo. Li muito a Bíblia durante aquela semana.

Sábado chegou mas os planos foram alterados, meu cunhado, o mesmo que me trouxe de mudança, viria buscar minha mãe, minha irmã ligou para dizer que chegariam sábado à tarde para dormir e só iriam no domingo após o almoço. Tudo bem, que fazer? Eles chegaram trazendo minha sobrinha de quatro anos, uma benção. Sábado à tardezinha minha irmã resolveu que iria arrumar o meu guarda-roupa, minha sobrinha Jéssica estava por perto, minha irmã distraiu um pouco e minha sobrinha achou a moldura que Jorge me dera para guardar. Pegou-a e veio para sala me pedindo para abrir, minha irmã acudiu alcançando-a já na porta do corredor que vinha para sala, ela protestou dizendo:

— Eu só quero ver, mãe. Tio, por favor.

— Pode deixar, maninha.

Confesso que por dentro estava pouco importando-me com o que acontecesse, ainda estava muito chateado com Jorge, mas lembrei-me das palavras dele: “É a moldura da mãe do meu melhor amigo” e alertei:

— Só não deixa ela estragar, que isso não é meu.

Ela tirou a moldura do embrulho e exclamou:

— Gente! Que coisa mais linda! Vem ver, amor. Mãe, venha aqui ver isso.

Todos ficaram admirando o quadro, quando já iam guardar de volta sem que eu mesmo visse Jéssica protestou:

— Deixa eu ver direito, mãe.

Minha irmã perguntou-lhe então:

— Você sabe quem é esta, Jéssica?

E ela respondeu:

— Sei, é a mãe de Jesus.

“Facilmente poderás encontrar

Um homem que tenha fé em Jesus Cristo

Mas não tenha devoção à Maria,

É impossível porém que encontres

Um único homem que seja, devoto de Maria

Que não tenha fé em Jesus”