Herança

Longas foram as tardes em que me sentei sobre os últimos degraus, dividindo o olhar em direções opostas: atrás de mim, no alto da escada, meu pai vigiava fixamente o horizonte, esperando meu irmão de braços cruzados e semblante sério; à frente um campo largo e aberto, onde nenhuma vegetação ousava crescer muito e onde a vista, por percorrê-lo, adivinhava o cansaço. Meu pai possuía muito mais fôlego, nem piscava.

Lembro-me de pensar como era possível aquela madeira desgastada suportar o peso de um homem tão grande e resoluto, que parecia não notar no ranger da casa o corolário de seus passos, quando eu contando com oito anos e menos de cinqüenta quilos me punha na ponta dos pés com cuidado, tentando não despertar os lamentos agudos escondidos nas tábuas. Quando à mesa esperávamos nosso pai, era a tensão da madeira que vinha quebrar o mutismo familiar. Depois a torneira e a água caindo anunciavam que o almoço seria para breve, e então meu pai aparecia de mãos e rosto lavados. Antes de comer fazíamos uma prece em silêncio, e mesmo que ninguém nos tivesse contado muito sobre Deus, era de adivinhar que Ele ouvia pensamentos.

Não sei se poderei um dia pisar os mesmos caminhos com tamanha certeza, algo mais do que a solidez da casa se perdeu desde o tempo em que meu bisavô chegou nestas terras, vindo do centro da Europa, estabelecendo e construindo aqui sua nova moradia.

Eu era jovem e não compreendia qual motivo o levava a aguardar de pé por tanto tempo, no alto da escada, e eu ia ficando por ali apreensiva, desejando por um lado que Jean voltasse logo, que o castigo fosse tão rápido quanto tapar meus ouvidos com força e esconder a cabeça sob o travesseiro, tão fugaz quanto o ar tornando-se quente e escasso, e por outro desejava que não voltasse nunca, para não precisar descobri-lo tão nítido quanto os batimentos do meu peito quase compassados com o açoite.

Desde que completara treze anos começaram os sumiços e silêncios sempre mais longos, o tempo o tornou um vulto distante, sempre mais misturado às sombras do poente. Quando eu ainda podia vê-lo chegando ao longe, adivinhava em seu rosto um traço de outra vida e de um ardor por mim desconhecido, porém a crescente proximidade fazia esmaecer essa impressão efêmera, tão apagado e sisudo ele se punha à frente de nosso pai.

Somente aos poucos eu percebi que o sossego do outro dia era apenas meu. Por muito tempo um sorriso dele bastava para que eu não notasse o quanto a ferida lhe ardia por debaixo das roupas, era o suficiente para que eu ainda o convidasse para correr e brincar, o que seria insensível, se não fosse ingênuo.

Somente aos poucos comecei a perceber que a convivência humana não era como uma comunicação por osmose, não haveria equilíbrio ao fim desse tempo juntos, tampouco o peso crescente no meu peito seria acompanhado por uma maior leveza no dele. E assim tornou-se cada vez mais tênue a linha que demarcava em mim um conflito, à longa espera e ao breve tormento do castigo, sucedeu a agonia de todas as horas e o desejo de que ele não voltasse.

E quando seu vulto não mais se distinguiu das sombras, eu esperei uma palavra que demarcasse essa ausência; meu pai nada disse e a pergunta que ardia em meus olhos tornou-se fogo a crepitar no peito. Aquele dia ele voltou-se silenciosamente para dentro, deixando-me a interpretar a língua morta das tábuas. A casa estalava como se fosse lenha.

Depois continuei correndo solitariamente, correndo pelos campos, cada vez mais a tapar os ouvidos, cada vez mais a querer enfiar a cabeça sob a terra, cada vez mais longe dessas paredes frágeis entre os seres, que deixaram contar o que ficava suspenso entre o rosto sério de meu pai e o sorriso triste que meu irmão me lançava, quando ao me virar esmorecia sobre minhas espáduas, como uma bola de gude que desce denunciando o oco das escadas, a comunicar mais do que os genes através dos séculos.

Franciele Bach
Enviado por Franciele Bach em 18/01/2013
Código do texto: T4092512
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