Jazz
Ao som de Jazz Radio.com
Ele apagou o cigarro no cinzeiro dourado do balcão, tomou de um trago o resto de vinho seco da taça, colocou o chapéu na cabeça, depois de alisar os cabelos para trás e partiu em direção à mulher de vestido vermelho do outro lado do salão. As pernas já caminhavam no ritmo dos primeiros acordes de um contrabaixo pesado e do batuque do piano, tocado por um negro de terno marrom. Ela o viu se aproximando, deu seu sorriso comedido e sensual, lambeu os lábios rubros de batom, deu uma longa tragada no Blends, prendeu a fumaça, deixou o cigarro queimando no cinzeiro e esperou. Quando ele chegou para pegá-la pela mão, soltou a fumaça no rosto dele e se levantou, refazendo o coque no alto da cabeça.
Ela foi se perdendo no meio dos homens no salão e ele partiu em seu encalço, esbarrando nos homens que fumavam charuto, enquanto o cara do sax tenor começava a dar os primeiros tons. Ela segurava a barra do vestido de cetim para não tropeçar, olhava para trás e ria. Ele se sentia motivado pela risada dela, presa que foge sabendo que será pega, só para deixar a caça mais divertida.
O baterista arrumava a bateria, que só tinha um bumbo, uma caixa e um chimbal, além de dois pratos agudos. De onde estava, viu a perseguição e sorriu, deixando o cigarro bem no canto da boca e o chapéu cobrindo metade do seu rosto. A caçada continuava. Ela dava voltas e mais voltas; ele, ao invés de se antever aos movimentos dela, continuava sua perseguição obstinada e infrutífera.
Ela olhando para trás não o viu mais em seu encalço e, num descuido, saiu da multidão para uma clareira humana no meio do salão. De repente as luzes todas se apagaram e as vozes incessantes silenciaram por um momento. Ela ficou confusa e olhou em todas as direções. Um facho de luz a iluminou bem no meio do salão. O pianista fez um arranjo nas notas mais altas e foi descendo, o contrabaixista fez um slide, e o baterista acompanhou. A música começou a tocar. Ela respirou e começou a dançar ao ritmo do jazz, fazendo seu vestido girar e seus braços se perderem, soltos no espaço.
Houve um momento de contemplação geral, até que o sax tenor entrou na sinfonia. Enquanto girava e dançava ela via os homens da banda, todos de terno e chapéu escuros balançando ao swing da música negra que caiu no gosto dos bon vivants brancos ao redor do mundo. Somente o pianista, também negro, estava de terno marrom e sem chapéu. De repente, numa meia volta, sentiu-se abraçada pela cintura e sorriu ao ver seu caçador dançando com seu corpo colado ao dela. Caça e caçador, movendo-se sincronizadamente, numa perfeição rítmica. Os corpos se encaixando em cada curva e o calor aumentando entre eles. As pessoas em volta aplaudiam enquanto a dança se desenvolvia.
Ao perceber a movimentação, a banda se empolgou e o pianista começou um solo sem fim, seguido de muitas viradas à contratempo do baterista. Os dois dançavam como se tivessem aprendido a fazê-lo antes mesmo de aprenderem a andar. Como se sempre tivessem sido um só corpo, de quatro pernas e quatro braços, com uma sintonia perfeita e a singularidade da natureza. Os olhares
conversavam enquanto a dança prosseguia, o dele se vangloriando por ter conseguido sua presa e o dela desdenhando, como se tivesse se entregado por vontade própria. Os dois sentiam-se intensamente íntimos, já haviam feito aquilo muitas vezes, em muitos salões, em diversas cidades, embora mal soubessem o nome um do outro e tivessem se conhecido há poucos minutos.
O compasso da música parecia acompanhá-los, e não o contrário. O pianista acabou seu solo, e o saxofonista começou o dele: a música não podia ter fim. Ninguém conversava em volta. Estavam todos envoltos naquela mística dança, onde os corpos, os olhos, a pele, os cheiros e a saliva pareciam encontrar a plenitude.
Depois, a luz foi diminuindo cada vez mais e ganhando uma intensidade amarelada. Os solos terminaram e a música começou a baixar de tom, ainda lentamente. Então, num lance final, quando o caçador inclinou sua presa para o golpe de misericórdia (um beijo doce, com gosto de vinho seco e tabaco), ouviu-se um estampido. A luz se apagou. A melodia terminou ao som de um baque seco, o silêncio mórbido de um caçador que virou presa e os gritos de horror de uma presa que se deixou levar.
As portas se fecharam, ninguém mais entrou, nem saiu. A polícia chegou ao local, onde encontrou uma mulher de vermelho, com respingos de sangue na face pálida e um sorriso de choque nos lábios rubros. O silêncio prosseguiu o resto da noite, entre diálogos de policiais interrogando a todos. Só um outro som aterrorizou a todos, depois de algumas horas: o baterista derrubou os pratos no palco. Desta vez fora só um susto.
William G. Sampaio [31/10/2012]
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