O INVERSOR DE VALORES
Alzira, Alzirona , 54, mulher de não meias palavras e quase nenhuma pataquada. Linha dura, de falar torto e olhar grosso quando exigida. Um sistema de vida meio que militarizante, adotado não por imposição, mas por naturalidade. São vinte anos de metrópole para uma pessoa que já teve muito em sua cidadezinha natal: Óbidos (PA). Teve bexiga, barriga d’água, comeu terra, chupou rapadura por diversão, levou surra de corda do pai e irmão mais velho (eram sete). A mãe mal conheceu porque morreu numa enchente despropositada, naquele lugar onde só chove para desgraçar e quando não é desgraça continuada. Agora sim é que era mais Alzira, Alzirona, solteirona destinatária, pois nenhum caboclo acertou com o seu jeito impetuoso de ser. Ela também não acertaria nada nunca com ninguém, na medida do tanto que era esquiva a relacionamentos. Decerto não era dada a afagos e afetividades mais intensos. Um sistemático querer de vida, ranzincista, mas nem por isso de toda amarga, e às vezes até sorria. Há vinte anos comandava uma pensão suburbana num bairro classe pop de São Paulo. Isso por conta de herança de um desses tios que só aparecem em estórias para mudar os rumos das coisas.
Assim, a grande casa térrea, até que moderninha por fora, reboque chulo, jardim de patos, ornamentos ridículos,mas bem postos a enfeitação. Dentro, cozinha, dois banheiros, seis quartos médios e uma saleta de bolso. Assemelhava-se mais a um hotel de quarta com cada macaco no seu devido galho. Tudo bem limpinho e cheiroso a mofo. A casa não era para moços nem para moças. Era para qualquer vagabo ou vagaba, autoridades mínimas em quaisquer coisas, confrades, aspirantes políticos, pseudo-intelectuais, jogadores inveterados, marido traído ou mulher viúva. Enfim, lugar de paragem e passagem de povo.
Alzirona nunca se importou com a intersexualidade do meio porque dizia que cada um deve saber e fazer de si. E tratava no praxe e quase imparcialmente a todos ali no seu mundão cabanão. Seriona e na contra-mão do jeito, justamente por sua inflexisociabilidade, devia dar com os tipos mais exóticos e comuns que na “Pensão Benevides” (nome colhido do tio) vinham, instalavam-se e iam-se sem deixar mais nem trê-lê-lês. Todos os personagens possíveis, desde o de maior baixeza sexual àquele em constante estado de êxtase espiritual, já passaram pela Benevides.
___ Uma ecleticidade absurda desse povo de meu Deus! ___ Assim referia-se Alzirona quando argüida com relação aos perfis dos hóspedes.
Sem lero-lero que conversa muita é pouca, fixemos já um tempo para dar pontapé à trama. Fins de década e século XX. Não vamos nos ater aos comezinhos do dia-a-dia de uma pensão porque quem não sabe imagina como é, e como é o que há e o que se move de espaço a espaço, tempo a tempo, fato a fato... Datado de ontem, Malagueta era o nome da cozinheira da pensão. Uma negrona esperta toda a vida e provavelmente tão bondosa quanto a maioria das cozinheiras de estórias. Mui discreta, Malagueta preferia não cheirar nem feder, apenas cozinhar.
Alzira era mesmo Alzirona, espiã de tudo e pouca prosa, cuidadora dos patos e do jardim , assistente assídua de novelas, leitora do horóscopo do dia e de comparecimento certo à missa aos domingos. Gostava era do padre. Às vezes, dizia a ele que dava uma vontade de morrer só para ir ver o céu como é que é. Não por à-toa, simpatizou-se logo com um jovem hóspede seminarista. E simpatia religiosa tem força de leão e leveza de pomba. Aos vinte e dois anos, Deocir adotou o apostolado católico, embora tivesse em si reunidas tantas formas de procura e adoração a Deus. Estudioso de todas as correntes psico-teológicas: hindus, árabes, espiritualistas africanas, pentecostais. Enfim, uma ecumeneidade em pessoa. De tanto procurar a verdade e a razão das coisas, um dia, sentado em guia de calçada, Deocir olhou
para o alto e viu Deus, por fim encontrou Deus em elipses vertiginosas, uma formação de pássaros em sincronia perfeita. Desde então, desacoçoou-se de tanta busca e preferiu viver de bem consigo e melhor com o próximo. Em breve, Deocir tornar-se-ia clérigo em sua mais conveniente catolicidade. No último ciclo de estudo sim, todavia a integral morada lhe era negada no convento, pois que bocas incertas de puro fel o acusavam de aviadado. Se sim, pelo menos não teria intenção de constituir família. Se não, melhor para todos. Na pensão, o seu quarto era o primeiro da porta de entrada para adiante (todos os quartos ficavam lado a lado, em estreito corredor). Decorado do simples, possuía uma fluência de algo de paz, conforme séria notância pelos mais sensitivos. Mas como era correta a devoção do quase padre, dada a multiplicidade de imagens de santos, terços e cruzes naquele quarto oratório.
No quarto imediatamente ao de Deocir, Asdrúbal Neves. Este sim, rapaz de metideza, vinte e nove anos. Ele fazia questão do Neves. Admitia que o sobrenome lhe dava o respeito merecido, pois provinha de uma tradicional família botucatuense. E quando o chamavam apenas Asdrúbal ficava raivoso: Asdrúbal, não! Asdrúbal Neves! Também, coitado, com este nome seria melhor apenas Neves, ou Neves Neves. Era advogado criminalista de boca mais de meia que nem tigela rasa e, com tal e pois formação capenga em universidade sem nome. Embora fosse sujeito de muitas minudências a embaralhar-lhe o cérebro e ter um senso justicional incomum, Asdrúbal nunca fora o supra-sumo do tamanco, pecando não raras vezes por pompa inflexível. Vivia de fórum a fórum lidando com casos perdidos, com a freqüência completa sancionando réus confessos. Introspecto, virou bosta n’água depois de a noiva ter lhe deixado sem explicação ou causa alguma aparente. Nos fins de semana bebia crush com vodca, pitava um charuto de porco e divertia-se com as volúveis do bairro.
Na alcova ao lado, certa, a alcova de Nilcete. Antes fora alcoviteira, nos tempos de pós-moça, na feminina época em que amor, sexo e paixão são tudo a única e restrita coisa. Mulher leva e traz de
farpas e farrapos entre as suas pares. Até que cursou faculdade, psicologia ilícita ajudada na paga com bico de corpo. A mentalidade tacanha de Nilcete, aliada a hábitos contra-sensuais, nunca comportou o que a si mesma propunha. Formada, foi psicologiar com loucos enclausurados a fim de dar modo de entendimento a eles. Quem perdeu a noção foi ela. Aliás, onde está o limite entre o débil e o indébil? E o recrudescimento da situação? A posse de jeito e fala alheia? A loucura é mais um natural formador da personalidade com gradações mui variáveis. Nilcete deixou disso, casou-se com um soldado bronco que matava o cabra sem saber se o cabra era o tal. Mas ela dava das suas também. Adúltera, ninguém lhe atirava pedras, e de quando em vez recebia flores de antanho de um molambento. Quando o marido um dia morreu matado, ela não teve como pagar o aluguel. Sem filho, foi para a pensão com trinta e cinco anos, de cabeleira tingida do pior, magrelona e realmente feia. O seu ganho de vida era oriundo da manicuração da mulherada baixa e de prosa vulgar da vila. Não se sabe o rolo que se deu, o porquê dela nunca ter recebido o soldo do João, que virou sargento depois de morrido.
No quarto quarto do corredor, um vazio. Há anos era reservado ao etéreo, ao espectro. Alzirona contava que num longe de data um caboclo hóspede do Norte, numa noite sem sombras de dúvidas, enfiou-se-lhe o facão no bucho. Morreu, mas não morreu, e o espírito ali permanecia em expiação contínua. Já foi padre, exorcista, médium doutrinador, benzedeira de parto e mais gente resolver. Sem sucesso, o quarto era mesmo dele.
No quinto cômodo de dormir, Alzirona e o seu jeitão. Cama, cruz, televisão, poltrona, mesinha, salmos, porta-roupa e criado nada mudo e um tanto confidencial. Tudo na cor do básico e sem exorbitar as convenções.
Eis que por esse tempo de agouros sucessivos e os mais variados, onde um filho do palavrão bate na mãe e arrota compreensões, e uma guria bacana desingringuela de vez e quedas tão fácil, chega a Benevides, para efeito de dar o que dizer por longo período, o ocupante do sexto e último cômodo. Jerônimo Simplício, um camarada de estatura mediana, meio magro oculado, mui bem trajado e de palavreado rebuscado, veio foi da França, após
demorada estada naquele país. No Brasil, ele e Deus de família, pois o restante morrera em acidentes de água, ar e chão. Com verba de sobra por conta de heranças espontâneas, Jerônimo, incomum, nunca precisou labutar o corriqueiro e, como era dotado de inteligência investigativa, pôde concretizar em pausada larga os seus experimentos, secundados pelas ciências diversas das quais perscrutava as nuanças. E por que na França? Pois não é que seja superstição ou algo de fato a ver com o caso, Jerônimo quis a terra de Robespierre, Proust, Kardec, Balzac, Sartre, Hugo e Napoleão, para ver se lá moldava um intento, um invento, enfim uma engenhoca que há muito lhe ruminava na mente. E assim se deu.
Após dez anos de Françuá, Jerônimo Simplício na Benevides foi parar. E não veio só. Antes, a “coisa” é que o trouxe para falar com o Presidente da República ou raio que o partisse. Consigo uma maleta preta contendo um tal treco. E, cheio de cuidados, foi logo dizendo à cozinheira:
_____ Não mexa na maleta preta Malagueta!
Não bem uma mala, mas sim um caixote de fino trato, quadrado e com baita alça. Obviamente a curiosidade de todos aguçava com o passar dos dias, pois que o sujeito Simplício entrava e saía desmedidamente com o trambolho. Já que ele não era representante de alguma porcaria nem caixeiro viajante, o que havia dentro daquela caixetola? Seria Jerônimo mafioso? Saltimbanco? Seqüestrador? Acrobata? Camelô? Professor?
Uma convocação de súbito poria fim ao mistério. Simplício, numa segunda de cinzas e sem precedentes, chega a Alzirona em alto e necessário tom:
____ Preciso falar com todos esta noite. Às nove. Trata-se de uma experiência, assunto de sigilo. Acredito que posso confiar nos camaradas desta casa. Por ora é só. Conto com a presença de todos. É muito importante! __ E saiu.
Alzirona acatou de pronto e logo pela manhã todos os pensionistas ficaram cientes do compromisso notúrnico. Ganha império a curiosidade geral.
Na saleta de bolso, às nove, reunidos em círculo apertado devido a dimensão do micro-ambiente, Deocir, Nilcete, Asdrúbal (o Neves), Malagueta e Alzirona. Até o espectro do caboclo do Norte devia de estar lá para conferir.
No centro da roda, em pé incontestável e resoluto, Jerônimo Simplício. E, a todas caras em cima de banqueta, a maleta preta.
_____ Cavalheiros e lheiras , que hora! Irmãos de casa, dado que pelo destino quis Deus eu cá convosco,o que trago nesta caixetinha é minha vida e mais de mim, e mais de muito mais. Ninguém mandou eu nascer em família de bonança para não ter de labutar o corriqueiro de um dia. Tenho quarenta e dois anos, nasci em Minas baixa, numa fazenda de lagoa e terra a dar com curvas e retilíneas a se perderem de vista. Os pais meus me quiseram para ficar como o mano velho, veterinário de porco criador de gado de corte. Mas o negócio que quis e fiz foi outro. Irresponsável eu nunca fui, como nem nunca me meti à besta de ir botar banca e pinta de playboy do mato em cima de balcão de boate metropolista. Certo é que traguei cachaçadas com amigos sazonais em retiros vários por lugarejos, vilas, mundos e brasis afora. Até do amor julguei conhecer por ocasião de uma fulana que conheci numa ida aos pampas. Gaucheta arretada, tchê! Barbaridade! De atenções e afetos demasiados ela fartou-se e a chifrada da boiada toda, até a do fazendeiro vizinho, veio se instalar na minha fronte. Descri das coisas e fui sem mais tardia ao invento.
Após meio fôlego:
_____ Gente, que exatidão! Mas que exatidão quando Brás Cubas proferiu: ___ Leitor, Deus te livre de uma idéia fixa!___ Há dez anos e meio atrás, poliglota, viajado e sem parada que me agüentasse, finquei um certo pé em Paris para parir a idéia. Não sei se por similitude e grande apreço a antepassados desconhecidos ou eu redescoberto, foi lá que eu, muito bem quisto e topado por todos como bom, pude dar vaza a minha curiosidade investigativa, botando fuça em pesquisas científicas, sociais, religiosas e tudo junto. Também não sei o que é que se me dava, essa agonia do saber, de perscrutar as nuanças das possibilidades diversas. Mas a idéia fixa reinante, durada por todo tempo até a consumação da coisa e que me trouxe de volta ao Brasil está aqui nesta caixeta preta.
E, reforçando a postura, convencido de sua autoridade local, vai Jerônimo:
_____ Senhores, atenção! Atenção tresdobrada porque o trem é de muito sigilo e careço da colaboração de todos. O que os senhores irão conhecer agora é algo tão revolucionariamente humano e crítico, que se não pactuarem comigo numa cumplicidade absoluta pego meu rumo e saio torto para qualquer canto, porém aqui não fico mais. A confiança que sai de mim até me desconfia.
_____ Claro, claro! ___ Clamaram em uníssono. E quem deu o tom foi o caboclo do Norte.
_____ Pois que assim está muito indo.
Jerônimo Simplício, em decidido impulso, achegou-se com paternura à maleta preta. Abriu-a num átimo jeitoso por demais, esboçando um sorriso sêco desdenhoso sem dentes. Figurou-se, ante os olhares sem entendedura daquela cúpula pensionista, um aparelho eletroeletrônico meio que quadrado, metalizado, com quatro fios de metro saindo da traseira e imantados nas pontas. Um treco assemelhado a um transformador energético.
______ Ochê! O que é isso, companheiro? ___ Já logo de bicudo, interpela Asdrúbal (o Neves), com todo o ar da sua graça.
______ Isto aqui, ôô, é um pouquinho de Brasil... Senhores, este fenômeno, composto por mim e outro camarada zureta francês, é engenhoca única universal. Um aparelho capaz de alterar completamente o comportamento do ser humano e de até embaralhar a base da personalidade, de tal modo conseqüente que a pessoa vira outra. Batizamo-lo “O Inversor de Valores”.
A explanação não prosseguiu, pelo menos por trinta minutos ou quase isso, porque o povo não quietou. Mas foi um zum-zum-zum, um ti-ti-ti, um qué-qué-qué, um pá daqui, um lá de lá, um vixê Maria danou-se tudo, onde é que eu tô que a conversa é pra boi dormir e me dá licença que eu vou partir...
Jerônimo Simplício exultava da prevista reação. E vai.
______ Senhores! Menos alarme e balbúrdia. Isto aqui é obra do bem para o bem. Sou sim cristão e nada faria de oposto ao bem suceder do próximo. Sucintamente quero explicar o funcionamento de modo mui prático, objetivado. Vocês verificarão a racionalidade do processo. A caixa metalizada é ligada numa rede convencional de energia, a qualquer voltagem. Em seu interior há um chip sutilíssimo, uma memória aguçadíssima, um processador tão amiudamente potente e captador que é capaz de registrar, processar e
transformar as mais profundas emanações mentais que o cérebro consegue compreender, respeitando efeitos anímicos e outras manifestações mediúnicas de naturezas e intensidades diversas. Os quatro fios: cada um deles tem um adesivo magnético na extremidade. Três devem ser fixados na caixa de comando do cidadão. Um bem no alto e no meio, o equilibrista. Um no hemisfério esquerdo para equacionar o cálculo das probabilidades, que nem sempre é uma pilhéria. O outro no hemisfério direito para dar trato de quererês, paixonites e contendas irredutíveis. O quarto fio, mais simbólico do que atuante, endereça-se à região do tórax, do coração. Sem muito porquê, principalmente o mulherio crê na crença de que a bomba sanguinária é o berço dos sentimentos. Enfim, enfim, temos as conexões.
Deocir, Nilcete, Asdrúbal (o Neves), caboclo do Norte, Malagueta e Alzirona, ainda muito em queixos espantos, ansiavam por mais juízo.
_____ Senhores, visto este invento ser destinado a promover uma melhora por demais de boa no jeito de ser da gente, não temam! Existe ainda um dispositivo chamado “mantenedor de aquisições”, um regulador sentimental capaz de garantir ao indivíduo aquilo que ele tem de bom, ou seja, o que há de caráter, de correteza de conduta, solidariedade e mais de boas maneiras. Tudo é mantido, pois o que não pode é o homem perder o bem que tem. E como o trem no geral funciona? Em voltagem normal, levemente chocável. Liga-se o aparelho à tomada, conectando-se os quatro fios, três na caixa de comando e um no peito da pessoa. Choque manso de duas horas, o coração salteando de tonto e a memória apagada por completa. A coisa vai processando, assimila o teor do corpo, arquiva, desarquiva, embute e desembute coisas velhas e novas, esparge o mal, recobra o bem, ajeita, amolda, configurando caprichosamente uma nova criatura. Após duas horas, apenas duas horas, desfaz-se o aparato e nada acontece porque os efeitos só vêm em três exatos dias. Estudo meticuloso, três dias bem contados: o tempo da combustão mental. E, finalmente, a inversão dos valores.
Entreolhos, bocabertas, desassossegos e pasmarias. O povo estava que não guentava. Deocir, o mais repulsivo:
_____ Isso pode que funciona, mas Deus desaprova!
Nilcete:
_____ Eita! Se colocarem isto em mim, vai que viro santa e a vida perde a graça!
Malagueta e Alzirona de olho. O caboclo do Norte não fez pronunciamento. Asdrúbal (o Neves), entusiástico:
_____ Justo! Magnífico! Podemos acabar com a bandidagem. Imaginem os valores invertidos. Até largo mão do criminalismo e vou advogar sem advogar. Talvez até mudo de profissão, quem sabe, sei lá...
Jerônimo Simplício, grande conciliador e acalmador de ânimos:
______ Eu bem sei que as vossas cabeças formigam. Tudo é muito natural, resistência, uma certa repulsa repentina, uma curiosidade mais agravada, desconfiança. O invento é novo, de sigilo. Não há patente nem vertente. Além de nós e do zureta amigo meu francês ninguém sabe da coisa. Já até marquei
audiências com os presidentes da Câmara e do Senado. Minha família é só de mim, mas ainda guarda no nome lá suas influências. O inversor, o inversor de valores é único e jamais será produzido em escala. E...
E ele prosseguia relato, explicações com pormenores, histórico de vida, utilidades e bobagens. O relógio da saleta aponta meia-noite e nesta ninguém dormiu. Não é que Jerônimo Simplício tinha um poder persuasivo deveras de hipnótico, como a de um político cadeirático, digo, catedrático? O dom latente começou a latir. O fato é que todos, com exceção do caboclo do Norte que não se materializou, acataram a insanidade com estupenda tremenda coragem. E aderiram ao cobaianismo. Os pensionistas, inclusive a dona da pensão, passariam um a um e até o raiar do dia pelo Inversor de Valores. Jerônimo simplício:
______ Vocês serão os primeiros de uma série de milhares de pessoas a mudarem radicalmente os seus modos de vida. E para melhor, evidentemente. Como já foi dito, o instrumento desconhece subtração e apenas faz soma. Eu não quis a boa nova na terra de Napoleão porque lá o povo é quase todo meio certo. Não há uma carência tão grande de melhoria como a verificada no Brasil. Então, por patriotismo ou bom senso é que desejo o progresso deste país tropical, abençoado por Deus e bonito por natureza. E com a soberba contribuição dos senhores irei com provas e constatações verídicas de sucesso ao Senado Federal e à Câmara dos Deputados, em mor de tornar pública esta dádiva da reformulação humana por meio da máquina.
Sem mais demora, urgia a hora naquela segunda-feira histórica. Duas horas para cada um. Era a Benevides com duas horas de fiosada na cabeça e no peito, choque maneiro, memória apagada e a coisa processando, ininterruptamente. Assim foi indo até de manhã cedo. Pela ordem, Asdrúbal (o Neves), Malagueta, Nilcete, Alzirona e Deocir. O caboclo do Norte espiou, circunspecto.
Aquilo tudo finado, terça, quarta e quinta normais. A turma, de sobreaviso, aguardava o tal “efeito”após o terceiro dia. Nenhuma colateralidade até então. Cada qual no seu rumo de igual. Apenas Nilcete, a mais vaga, à espera de uma real revolução. Os demais confiavam num embuste, convictos na decepção de terem sido alvos de obra charlatã. Jerônimo Simplício de lá para cá e vice-versa, mudo, não dormido e na surdina cagado de apreensões.
O caboclo do Norte, pela primeira vez em anos, ficou só na Benevides naquela “sexta-feira”. Todos saíram bem junto do sol e à noite não voltaram. E no sábado não voltaram. Domingo, não voltaram.
Segunda-feira cinza roxeada preta. Segundo informações não oficiais Deocir foi visto na fronteira com a Colômbia. Aquilo de sublime que lhe emblemava foi perdendo relevância e o hediondo lhe veio vindo por normalidade. Deocir passou a liderar um grupeto sinistro de tráfico geral, aberto e sem restrições. Neves (o Asdrúbal), largou de mão, desmiolou-se por completo e na inópia passou a pedir espórtula. Não perdeu o rebuscado do palavreado andarilhando sumariamente pelo interior paulista. Arranjou logo alguns adeptos compadres seguidores. Juntos passaram a professar justiça nos becos. Enfim, continuou a advogar sem advogar. Nilcete, que antes fora alcoviteira, engraçou-se de tal maneira com um velho gordo lá do Sul, rico. Casou-se apaixonada de relâmpago e era amor de verdade, pela glória, é claro. Malagueta foi pega em plena Amazônia receitando guloseimas a uma tribo. Tribo moderna que já vinha com o cural antes do milho. Mas isso não importa porque Malagueta não desejava feder nem cheirar, apenas cozinhar. Alzirona retornou a Benevides em mais ou menos sete dias trazendo consigo dúzia de moçoilas, e o que era pensão virou coisa de escândalo na vizinhança. Contudo, a pataria e os ornamentos ridículos foram mantidos, de forma que não se alteraram a fachada e o nome do lugar. Alzira teve o jeito maleabilizado e de amores ou casos fortuitos passou a se dignar.
Isso de pouco posto e demais delongas dispensáveis, Jerônimo Simplício escorregou no tomate com direito a uma queda livre fenomênica. Escafedeu-se longamente, porém a sua volta a Benevides foi certeira, ultimado a convidar o caboclo do Norte a seguir com ele para mor de juntos fazerem lambanças em outras paragens, em planos desconhecidos. Foram.