= A DESPEDIDA DO CHEFE DO ARQUIVO=
A DESPEDIDA DO CHEFE DO ARQUIVO
RONALDO TRIGUEIROS LIMA
“D’aqui para frente, tudo será mais calmo. Ponteiros se arrastarão preguiçosos, sem o estreasse dos ativos terciários que se espremem dentro dos transportes desumanos das cidades. Pelo menos, (Fazendo piada)disso ficarás livre Figueiredo!”
Na verdade, o discurso de José Cunha lhe embrulhava o estômago.
Figueiredo tinha ânsia de sair correndo. Não aguentava ouvir mais nenhum “Ai” do seu substituto e antigo subalterno durante a cerimônia de posse do mesmo. Era demais. Logo ele, reservado, metódico, sensível, ser forçado pela circunstância a essa situação escabrosa que acentuava seus cacoetes histriônicos, e patéticos. Dessa maneira, completamente robotizado, parecia estar dentro de um caldeirão efervescente, onde lembranças e raivas se digladiavam, tal água e óleo.
No entanto estava ali, entregue aos desafetos da vida, exposto a alegoria gordurosa em que sua sala fora transformada.
Abraços e “tapinhas nas costas” de José Cunha... –-Que nojo! Ainda por cima, sentir os cochichos dissimulados e amorais que “esmerilhavam” olhos perplexos, como “laser” a cortar a sala.
...No entanto, (continuava José Cunha o discurso empolgado de posse), essa sensação de vazio não permanecerá por muito tempo... Porque a retidão do seu caráter trará a tranquilidade necessária para que possa usufruir pelos anos de dever cumprido, seu nome como exemplo a ser seguido!...
Felicidades querido companheiro Figueiredo, e obrigado por tudo. Desejo-lhe sinceramente nessa nova etapa, que goze os momentos proveitosos de sua aposentadoria.
E por favor... Se por ventura algum desentendimento colocou-se ao longo do tempo entre nós dois, peço-lhe humildemente perdão! Mil vezes perdão!
Digo-lhe isto, porque conheço o seu grande apresso a esta seção de arquivo, sempre tão elogiada. Sei que minha tarefa será árdua, em substituí-lo, mas prometo fazer o possível para seguir seus passos e seus exemplos. Tenho a certeza, que nos observará mesmo de longe, torcendo pelo nosso êxito. Quero prometer aos que aqui permanecerem o mesmo convívio fraterno e salutar entre comandantes e comandados. Dessa maneira, nada será interrompido por força do seu merecido descanso. A interação harmoniosa haverá de continuar como herança de sua passagem jubilosa.
Sendo assim, esteja certo companheiro, que jamais o decepcionaremos. Seguiremos seu exemplo com toda humildade e respeito.
Tenho dito.
( Enorme salva de palmas, e assobios bajuladores).
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Figueiredo permanecia calado. Certamente, envolvido pela decepção que o destino lhe reservara. Imaginem... Além de tudo, ter que ouvir de alguém, que tramara por sua “queda”, obrigando-o inclusive a antecipar seus planos de aposentadoria não compulsória. E ainda por cima ser surpreendido pela passagem antecipada do cargo, justamente ali, em sua sala de trabalho, recanto de sonhos e afirmações.
A raiva era tanta, que por mais que a controlasse, não aguentava ouvir uma palavra se quer do discurso cretino do José Cunha.
O pior é que tinha que engolir o último dos grandes “sapos” daquele velhaco.
Jamais imaginaria que após quarenta anos e três meses vividos naquela repartição, onde jamais em tempo algum, aceitou receber qualquer “agrado” que pudesse ser interpretado como desvio de conduta, ter que amargar o fel descabido de tamanha humilhação. Logo ele, “mentor da moral”, guardião da ética, logo ele, ( em sua igreja ) ter que se calar diante do discurso descabido, falso e arrogante do seu algoz. Sinceramente nunca imaginou tamanho desagravo moral a contrapor-se a tudo que seus olhos marejados e perplexos pudessem enxergar.
Figueiredo parecia um morto vivo, angustiado por aquela “despedida” interminável que lhe tirava o ar. Tanto assim, que não conseguia esboçar quaisquer palavras que a praxe do momento exigisse.
Assim, numa tentativa inglória ( penso eu ) de desabafar, influenciado por pedidos insistentes, ( alienados) de antigos “colaboradores”, e certamente numa tentativa de “vomitar”, é que acabou levando a mão ao peito, num grito horripilante de dor. Sua voz embolada trouxe a terrível frustração dos “mutilados”.
Não deu outra, perdeu os sentidos e caiu no chão.
Veio então, o grande silêncio cínico a encobrir reservas.
Com um quadro de enfarte, o recém aposentado foi levado às pressas para emergência de um hospital público.
Excetuando o seu fiel “escudeiro”, os demais presentes, entre “bebidas canapés”, e cochichos “ao pé do ouvido”, continuaram com suas aleatórias “bajulações redundantes” para alegria da nova chefia que se instalava.
Quanto a Figueiredo, soube do seu falecimento na semana seguinte ao ler a coluna destinada aos obituários de um jornal esquecido no balcão da padaria, enquanto “tomava” (como de costume) um cafezinho pingado, na espera que o garoto engraxate desse um disfarce no meu sapato.
Niterói, em 04.01.013
Ronaldo Trigueiros Lima