Quantas Chances Houver - Capítulo Cinco: As lembranças
As lembranças
Que tipo de destino o de Benjamim, seu pai o abandonou recém-nascido ao lado de sua mãe praticamente morta, sua tia era uma viciada com problemas com traficantes, os mesmos envolvidos com seu pai por sinal, seus avós não se importavam com ele, e agora eu recebia de herança a divida de sua tia. Eu ainda pensava em Maria, por mais problemas que ela me trouxe, não conseguia esquecer os momentos bons que passamos juntos, e pensava no que poderia ter ocorrido a ela. Passei a noite acordado ao lado da cama de Benjamim, pois não podia dormir de preocupação, aqueles dois podiam entrar ali a qualquer momento, mas padre Valentino me dizia que ali seria seguro, mesmo assim dormir era impossível.
Toda noite me Lembrava das histórias que Benjamim me contava, sobre sua vida nas ruas e no orfanato. Um garoto de cinco anos tendo que comer comida do lixo, brigar com cachorros por comida, pedir dinheiro ou qualquer coisa nas ruas, ser enxotado da frente de comércios e residências, ser tratado como animal por pessoas que muitas vezes não merecia o que tinha. No orfanato era mau tratado por quase todos, os garotos mais velhos se aproveitavam dos mais novos em quase todos os sentidos, as zeladoras se aproveitavam de todos os garotos, e a diretora e mais meia dúzia de pessoas se aproveitavam do dinheiro doado por empresas e pessoas de bom coração. Muitas vezes ele era obrigado a dormir no chão por não ter camas suficientes para todos, não podia chorar por qualquer coisa que fosse, pois não havia remédios E nem muito menos médicos pra ajudar, a comida melhor era roubada por funcionários, e o que sobrava era sopa de arroz quase todos os dias, aos cinco anos nunca havia comido um pedaço de bolo ou qualquer coisa que não fosse pães dormidos ou sopa de arroz. Mesmo depois de ter passado por tudo isso, e levando em consideração sua pouca idade, Benjamim nunca mostrou tristeza ou qualquer sentimento ruim. Sempre foi um garoto feliz e de bem com a vida apesar de tudo, e mesmo comendo sopa de arroz no orfanato, comida do lixo nas ruas, ou comendo bem como ele come agora, ele sempre foi o mesmo garoto, isso é o que me dava mais forças.
A morte é sem duvida muito ruim, porém a vida pode ser muito pior para quem fica, e por pior que sua vida pode ser sempre haverá alguém em piores condições, por isso, toda vez que for reclamar da vida olhe a sua volta, a vida de outras pessoas. A vida pode ser boa ou ruim, só depende do seu ponto de vista. Foi isso que Benjamim me ensinou. Fico imaginando quais eram as lembranças que ele tinha de sua vida, do que sentia saudades ou do que não lhe fazia bem lembrar. Ele me dizia que a única coisa que o aborrecia era deixar seus amigos no orfanato, pois a vida lá dentro realmente não era fácil.
Benjamim tinha um amigo com o nome de Daniel, o conheceu no tempo em que morou nas ruas, andavam juntos e cuidavam um do outro, se protegiam como uma família. Muitas vezes Daniel que era mais velho, conseguia comida para os dois. Quase sempre roubavam de mercearias, bancas de frutas e mercadinhos, pois dinheiro era uma coisa não muito fácil de conseguir. Pedir era inútil, os comerciantes da região já os conheciam, e estavam saturados com os pequenos furtos cometidos por garotos do orfanato, muitas das vezes fugidos. Mas qual seria a saída para os pequenos senão furtar para comer, já que ninguém dava se quer um vintém para matar a fome. E o orfanato que deveria cuidar e proteger fazia justamente o contrário, e até roubavam de quem já não tinha nada. As poucas doações feitas por empresários e grandes produtores da região acabavam nas mãos de quem realmente não precisava. Um destes empresários, dono do mais novo mercado da região, pertencente a uma rede nacional de mercados, abriu uma filial na cidade, com belas vitrines, produtos a mostra, tudo muito bonito e convidativo. Todos comentavam sobre o mercado, como havia produtos bons, e tantas novidades. Como todo garoto é curioso de natureza, e esta curiosidade munida de muita fome, fez Daniel ir até ao mercado, e como de costume apanhou algumas frutas e saiu correndo pelo estacionamento, neste momento um segurança o pegou e tomou as frutas de sua mão, o colocou para fora do portão, lhe dizendo:
—Não volte mais aqui garoto, aqui não é lugar para você.
O segurança tão imponente com sua arma e seu uniforme não preocupava tanto quanto a fome que muitos enfrentavam. As frutas tiradas de suas mãos deixavam um perfume cruel que só não era pior do que o cheiro de frango assado que vinha do mercado. Para quem está em casa com a barriga cheia não se da conta de quanto dói ter fome. Porém para aqueles dois era muito pior, Daniel com sete anos a mais que Benjamim se sentia responsável, e fazia o que tinha que fazer para não ver aquele pequenino amigo de apenas quatro anos, encolhido de frio e fome, lhe pedindo encarecidamente por comida. Escondidos em vielas escuras como de costume, Daniel deixava o mais novo, e partia em direção ao mercado sonhando com aqueles pães, doces, frutas e muito mais, sem ter certeza de que traria algo para matar a sua fome e a do amigo, e para isso enfrentava empreitadas perigosas, E na maioria das ocasiões voltava sem nada. Daniel pedia trabalho para todos na cidade, porém não arrumava, e quando arrumava, o cidadão tinha a pachorra de não o pagar. Em um dia de muito frio, a fome batia mais forte, e os dois não comiam nada há quase dois dias, estavam quase apelando para a lata de lixo da mercearia, onde os cachorros eram mais bem tratados do que os pobres garotos. Daniel resolveu ir ao mercado mais uma vez, mesmo com Benjamim pedindo para que ele não fosse, andou até lá, e com toda a sua agilidade de garoto pegou um pacote de pães, saiu em disparada em direção à praça. O segurança cansado dos roubos e da reclamação de seu supervisor que o observava pelas câmeras, tirou a sua arma, apontou para o garoto de aproximadamente onze anos que sofria pela fome e tentando ajudar a um amigo que já sentia o gosto dos pães que carregava, e em um minuto de completo desespero e raiva, um tiro é disparado. Um silêncio toma conta do lugar que pela primeira vez nota o garoto no meio da rua, a mesma onde ele viveu vários anos de sua vida sem ser notado. Porém agora caído envolto em sangue, e arrependimento. Benjamim continuava a esperar com a esperança de ver o amigo trazer a única refeição do dia, porém em alguns metros dali, na rua do mercado, o movimento aumentava espantosamente, Benjamim esperou o amigo por mais alguns minutos com medo de se perder, mas a curiosidade lhe falou mais alto, então andou até a multidão que o ignorava dando total atenção ao corpo no chão, chegou mais perto e lá estava Daniel caído em seu próprio sangue, um homem que se desmanchava em lagrimas e desespero, ajoelhado com seu uniforme sobre o corpo morto de Daniel. Daquele dia em diante ficaria sozinho, e continuaria com a mesma fome de sempre. Penso que uma pessoa tem que morrer para ser notada. Benjamim passou um ano entre as ruas e o orfanato. Sempre voltava para lá quando a fome apertava para comer a famosa sopa de arroz e fugia sempre que sentia saudades de seu amigo. Muitas vezes sentava na mesma viela escura na esperança vaga e perdida de que Daniel voltasse.
Em uma destas escapadas do orfanato, Benjamim foi parar na praça onde ficava sempre esperando por seu amigo, sentou-se, esquentou-se no sol, pois o frio estava cortante. Quando olhou a diante percebeu que havia um homem passando muito mal e se retorcia no chão com muita dor, viu que era o único na praça e que deveria ajudar, correu até a mercearia e pediu ao atendente que chamasse ajuda. Voltou rapidamente até o homem e com a voz doce falava ao seu ouvido que tudo estaria bem, porém o homem já não o respondia. Ele deu com as mãos, a ambulância parou ao lado e rapidamente atendeu ao homem. Após o atendimento o médico veio até ele e o agradeceu:
—Graças a você, o seu pai se salvou.
Ele envergonhado e ao mesmo tempo triste por não ter conhecido seus pais, deu um sorriso amarelo e entregou o livro que se encontrava ao lado do homem nas mãos do médico, e disse:
—Por favor, o senhor pode entregar este livro a ele.
Sem mais explicações, virou as costas e saiu correndo em direção a sua velha e conhecida viela escura e despareceu nas sombras. Este homem, no entanto era eu.