Quociente de Felicidade

Quociente de Felicidade

Maju Guerra

Carmem se aposentara há pouco tempo, o tédio, porém, já se instalara no dia a dia. Ela e Alberto, o marido, pouco conversavam. Sem os ruídos externos, as ocupações fora de casa, o bate-papo com amigos, era notório o descompasso. Carmem descobriu que sempre acatara a vontade dele, apesar de se considerar um ser inteligente com vida própria. Tornava-se urgente o buscar formas para evitar o seu naufrágio pessoal.

Com o intuito de dividir o problema e de encontrar novo ponto de vista, telefonou para Samira e marcaram para conversar. Aprender coisas novas seria o primeiro passo, concluíram. Além das aulas de ioga e de piano, Carmem resolveu voltar a estudar inglês, embora o marido considerasse tudo uma perda de tempo.

Durante uma aula de inglês, a lição girava sobre o tema: “HQ - Happiness Quotient (Quociente de Felicidade)”. Ela se assustou, não sabia mais o que a fazia feliz. Comentou só conhecer o QI, o da inteligência. O pessoal esclareceu que havia também o QE, o do emocional. Muitas novidades, o seu QE deveria estar tão malzinho como o seu QF.

À noite, começou a escrever sobre o que poderia torná-la feliz. A primeira coisa que lhe veio à cabeça foi a de ter uma casa perto de uma lagoa. Flores, árvores, gato, cachorro, pé na terra, fogueira em noite de lua cheia, água doce para nadar... Ela sempre quis, ele sempre contra.

Só de imaginar, perdeu-se nos seus devaneios. Não era sonho difícil de ser realizado, ela possuía meios para comprar a casa, necessitava somente de coragem. Em segredo, começaria a procurá-la no dia seguinte, decidiu.

Sem demora, Carmem encontrou uma casa jeitosa à beira de uma lagoa mágica, varanda grande, muita terra em volta. Sua alma a reconheceu, a casa já era sua.

Somente as amigas de fé souberam da compra. Elas se encontrariam, conversariam, fariam rituais pra Lua Cheia, jogariam canastra, já estavam organizando um clube de leitura... Seria o ponto de reunião para que cada uma cuidasse do seu feminino. Martinha, a mais passional, logo declarou: “aadooorei, vou curar o meu feminino ferido pelo masculino perverso”. Carmem afirmou que também não chegava a tanto.

Carmem passou a sair duas a três vezes por semana para ajeitar a casa. Inventava umas desculpas, Alberto nunca dera muita importância mesmo... Depois de pronta, sua casa era um aconchego só, quem entrava, não queria mais sair. O terreno limpo, a roda da fogueira para os rituais da Lua Cheia construída...

No momento certo, em segredo, contou tudo para os filhos. Por incrível que pareça, eles a compreenderam. Ela necessitava da ajuda deles, precisaria dormir fora de casa mais de uma vez por mês. Na primeira Lua Cheia à noitinha, todas se juntaram para o ritual, batizaram o grupo de “A Irmandade da Lua”. Quem se intrometesse não iria gostar das respostas.

No mínimo uma vez por mês, Carmem dormia fora de casa, o seu humor mudou para fantástico. Alberto, então, começou a ficar desconfiado. Que diabos estaria acontecendo com a sua mulher? Como todo homem que se preze, a primeira coisa que lhe veio à cabeça foi um amante. Carmem o estava traindo, que situação vexatória!

Um tanto envergonhado, procurou um detetive particular, precisava conhecer a verdade. Passado uns dias, o detetive o chamou ao seu escritório. Alberto, todo afoito, já entrou gritando:

- Quem é o vagabundo que está saindo com a Carmem? Diga logo. Qual a idade do safado?

O detetive riu e lhe respondeu:

- Calma, Dr. Alberto, calma. A história é bastante insólita. Sua mulher não tem amante, ela tem uma casa em uma cidadezinha perto daqui. Às vezes, ela vai só, às vezes com as amigas, um grupo chamado “A Irmandade da Lua”. Nessa noite, elas dormem na casa por causa do ritual. No começo, o pessoal do lugar achou estranho, mas já se acostumaram, gostam muito das “Irmãs”. Do modo como a história foi contada, me diverti bastante. Deu uma certa leveza ao meu trabalho.

Alberto, atônito e aliviado, sentou-se a pensar: “Por que a Carmem não me contou sobre a casa? Mulher é bicho estranho. Uma irmandade, quanta asneira!”.

Despediu-se do detetive. Quando ela sumisse de novo, ele apareceria por lá. Na quarta-feira seguinte, Carmem o avistou no portão, quase desmaiou de susto. Alberto a abraçou, conversaram, terminaram por se entender. Ele comentou:

-É, mulher, você está com a razão. O lugar é uma beleza. Viremos para cá todos os fins de semana com os meninos, vou comprar um barco, umas varas de pescar...

Carmem resolveu aceitar a proposta. A família passou a frequentar a casa da lagoa, o relacionamento do casal melhorou, a casa era mesmo milagrosa. Meados de novembro, Alberto, sem senso de limite, soltou a bomba:

- Vou chamar o Samuca, o Zeca, o Guiga, o Salaza e o Maneco pra passarem o Ano Novo aqui com as famílias. Mando construir uma boa churrasqueira naquele canto, já medi tudo. Vou mandar fazer também umas mesas de cimento com bancos...

Carmem se arrepiou toda. Churrasco, cerveja, 51, pagode rolando na casa das “Irmãs”? Respondeu-lhe que nunca, a casa era sua, não servia pra aquele tipo de heresia. Bebedeira, piadinha boba, conversa sobre mulher, ela se desdobrando para servir todo mundo, jamais e ponto final. Alberto se enfureceu. A mulher sugeriu, para o bem e continuidade da relação, que ele comprasse a casa dele. Ele e seus amigos poderiam criar o grupo “Os Amantes da Bagaceira”. A casa amarela da outra esquina estava à venda, quem sabe não seria a dele?

Depois de dias sem se falarem, Alberto comprou a casa amarela. No dia 30 de dezembro, a casa estava prontíssima. O casal combinou de se cumprimentarem, no dia 31 à meia-noite, no meio do caminho entre as duas casas.

Na tarde do dia 31, os convidados começaram a aparecer, cada um tomou seu rumo. A filha, a nora e os netos, além das “Irmãs” e filhos, foram pra casa da Carmem. O filho e o genro, já “Amantes da Bagaceira”, escolheram ficar com o Alberto.

A festa do Alberto foi uma baderna, na concepção das mulheres. A mulher e as filhas do Guiga, do Salaza e do Maneco pediram asilo na casa da Carmem, estava difícil aguentar o festão da casa amarela.

No dia primeiro, o pessoal da Carmem sentia-se ótimo, cedo já tomavam banho na lagoa. Quanto aos do Alberto, foi outra história. Todos de ressaca, implorando por Sonrisal e Engov. O Guiga achava que só um chá de raiz forte com gengibre e coca-cola daria jeito, já o Salaza queria leite de búfala. Ele afirmava que na Namíbia era o melhor remédio para o caso. O Maneco jurava de pé junto que a melhor solução vinha da Romênia, um bom ensopado de tripas de vaca. Obviamente, com o aviso para que bebessem muita água de coco e descansassem por lá, foram mandados de volta pra casa amarela.

À noite, todos se encontraram antes das despedidas. O povo da “Bagaceira”, em uma condição, poder-se ia dizer, bem melhor do que o esperado, comentava sobre a melhor comemoração de Ano Novo dos últimos anos.

Respeitadas as diferenças, as pessoas estavam satisfeitas e carinhosas, cada uma recebeu a chegada do Novo Ano do jeito que bem lhe agradou.

Aqueles que, a princípio, consideraram um absurdo o casal possuir duas casas tão próximas, com o tempo compreenderam a sensatez da ideia. Laura e Clóvis, por exemplo, já estão pensando seriamente em fazer a mesma coisa.

Maria Julia Guerra.

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