Bálsamo

“E eis que surgiu bela, tal qual flor que desabrocha, de lábios vermelhos e olhos brilhantes, enevoando seus sentidos para qualquer outra coisa que não o contorno de sua boca e o gingado de seus quadris, encobertos por uma saia verde sem adornos...”.

Não. Mais uma vez era traído por sua mente cansada. Se ao menos pudesse levantar-se, alcançaria a mesinha e colocaria uma pedra sobre aquela dúvida que lhe rondava a memória havia tempo demais. E ele já não dispunha de tanto tempo assim. Debilitado como estava e a mercê da quase inexistente boa vontade da estalajadeira, não gastava energias pedindo ou chamando pela ajuda de alguém. O jantar ainda demoraria e não era hora do banho, uma lástima em sua opinião, já que em sua juventude ele fora um apreciador ímpar de cachoeiras e rios, ou qualquer outra coisa que envolvesse água e ambientes campestres.

Seus devaneios foram interrompidos pelos gritos da velha governanta da pequena estalagem:

- Demetrius! Vá buscar mais água, seu peste! Há horas está aí gastando meu banco com seu traseiro magro! Para o poço, ande! Traste inútil!

Pobre criança, ele pensou, provavelmente sequer havia sentado no tal banco. Perdera as contas de quantos jovens já haviam passado pelas garras daquela mulher cruel na esperança de ganhar alguns trocados que colocariam mais um pão em suas mesas famintas, mas nem mesmo a fome era motivo forte o suficiente para suportarem o suplício. Nenhum dos ajudantes-escravos aguentava mais que uns poucos dias. Ele tinha certeza que seria outro rosto jovem e apavorado a aparecer em seu quarto no dia do banho semanal, com um balde maior que o corpo trêmulo a lhe perguntar como ele iria querer a água: congelante, de tremer os ossos ou apenas fria. No fim das contas, não faria diferença, sua carcaça velha iria esquentar de raiva e humilhação ao ser jogada de um lado para o outro como um saco de batatas enquanto era esfregada como um pano de chão pelas mãos calejadas daquela bruxa.

Sacudiu a cabeça levemente, a fim de espantar a imagem nada digna de sua pseudolimpeza e voltou os olhos para a janela.

O céu estava limpo e, apesar do brilho emprestado pelo sol, o ar frio entrava pelas frestas da construção e lhe enregelava as juntas. Mas ele pouco se importava, com a mente novamente perdida no gingado dos quadris e nos lábios vermelhos que o encantavam. Um pouco mais de esforço, e teria a certeza de sentir o cheiro dos cabelos da pequena cigana.

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Demetrius arfava. O balde cheio de água escondia quase completamente seu corpo franzino. Ele era muito pequeno e muito magro para a idade, mas a dona da estalagem pouco se importava com isso. Seus pais também não. Assim que conseguiu se sustentar sobre as duas pernas e falar mais que “mama” e “papa” começou a fazer todo e qualquer serviço que aparecia; Demetrius não poderia ser mais uma boca para alimentar, e como era um dos filhos mais velhos, deveria ajudar a família nas despesas.

“Então isso deve ser o purgatório”, pensava o garoto, lembrando-se dos sermões do Padre Julius. Todas as imagens que surgiam em sua imaginação infantil depois de ouvir o beato esgoelar-se no púlpito ganhavam cores incrivelmente vívidas durante sua jornada de trabalho na Estalagem da velha Esther. “Ela deve ser a mulher do Diabo, ou algo assim”. Era a única explicação que conseguia encontrar para a crueldade e amargor exalados por cada poro da estalajadeira. Sua mente de menino não conseguia captar o peso do passado negro que a mulher tentava esconder por detrás da armadura de fel.

Agora, sua maior preocupação era a tarefa que havia por cumprir. De todos os seus afazeres, o que ele mais detestava era ajudar no banho dos hóspedes. Um monte de velhos carcomidos pelo tempo, patéticos e frágeis, sendo sacudidos como galhos finos pelo vento de uma tempestade. E seus olhos, tão cheios de história, tão tristes e raivosos. Mostrando a quem quisesse ver a angústia. E eles olhavam diretamente para Demetrius, como que encontrando nele a saída para não encarar a expressão enojada de Esther.

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Era a hora do banho do sr. Émile. Demetrius nunca havia visto seu rosto, mas tinha certeza de que, como todos os outros, ele estava vivo mais por teimosia do que por saúde. Ainda que tentasse com afinco, a tísica não conseguia entrega-lo ao ceifeiro. Fora um combatente em sua juventude, diziam alguns. Outros cochichavam sobre a má fama que parecia ser uma sina para todas as moçoilas desavisadas que cruzavam seu caminho. A verdade apenas o velho sabia, e por ali, ele não tinha com quem compartilhar.

Depois de subir as escadas sendo empurrado pela mulher, temendo que a madeira não suportasse tamanho peso, Demetrius contorceu-se todo e bateu na porta, que ficava no final do corredor, com a ponta do pé.

“Do que adianta bater na porta, imbecil? O velho não anda mais.”

Não respondeu o insulto. Durante seu pouco tempo ali havia aprendido que o silencio era uma saída esperta para a maioria das situações. As pontas de seus dedos já estavam dormentes e ele torcia para que a srª. Esther não demorasse muito para abrir a porta. Sentia os joelhos tremerem.

Ouviu um rangido alto e suas narinas foram invadidas pelo cheiro de mofo. A estalajadeira entrou primeiro e sua silhueta larga roçava nas bordas da passagem. Ela logo fez sinal para que ele a seguisse, apontando para o canto onde deveria deixar o balde.

Demetrius entrou no quarto. Era um cômodo minúsculo, abarrotado de livros por todos os cantos, mas possuía a raríssima vantagem de ter um lavabo próprio. O menino não conseguiu disfarçar o suspiro de alívio e colocar o balde no chão.

Virou-se para a srª Esther e a viu levantar, sem muito cuidado da poltrona puída, o que parecia ser um saco de ossos. O sr. Émile deveria ter sido alto em seus dias de mocidade, pois mesmo encurvado como estava, ainda era bem mais alto que a estalajadeira. O velho possuía a pele bexiguenta e enrugada, e tinha um ar doentio de quem já havia enganado a morte mais vezes do que o recomendado.

E olhou para Demetrius. Com olhos mais expressivos que o menino já havia visto em alguém.

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Émile Sorel havia se preparado psicologicamente para seu banho. Eram apenas alguns minutos, dizia a si mesmo, apenas alguns poucos minutos sob o jugo daquele demônio de saias e poderia voltar á sua poltrona para perder-se em mais lembranças na tentativa desesperada de reviver os melhores momentos que vivera. Por mais vagas que fossem as lembranças de Najma, elas aliviavam a dor de sua ausência.

Ouviu as batidas na porta e aguardou. Pôde entender Esther falando algo a quem deduziu ser o ajudante-escravo da vez. “Ah! Sim. Vejamos quem será o pobre infeliz”. A estalajadeira empurrou a porta e deu passagem a um barril com pernas finas e trêmulas, e bracinhos retesados em esforço. Émile quase riu. A cena era mesmo ridícula.

O menino-barril soltou um audível suspiro de alívio ao livrar-se do peso. E, sem saber, sua figura lançou o velho num turbilhão de lembranças e saudades.

Sorel encarava a criança e ouvia claramente a voz musical de Najma.

“Meu pai expulsou-me da caravana, Émile – falou-lhe com um grande sorriso nos lábios – Mandou-me ficar com o porco cretino que me emprenhou.”

“E tu queres ficar com o porco cretino, Najma? – respondeu, refletindo o sorriso e abraçando-a. A gargalhada de Najma, acompanhada de um beijo, foram as únicas respostas.”Esther colocou-o de pé sem cuidados e tirou-lhe as roupas puídas.

“– Dança comigo, vem!”

O menino desviou os olhos para a escrivaninha. Por certo estava constrangido com o olhar do velho que não o deixava.

“– Onde diabos tu ouves música? E eu não sei dançar, mulher!”Sequer sentia a água enregelante e os sopapos da estalajadeira. A visão embaçava por conta das lágrimas quentes.

“– Larga de ter a cabeça enterrada num buraco. Não escutas as batidas do teu coração, criatura!? E se sabes andar, então sabes dançar!"

"– Inferno de cigana teimosa! Olha o tamanho da tua barriga, queres parir antes do tempo?"

"– Mas que preocupação mais sem fundamento! Nosso filho vai ter meu sangue, sangue quente, de quem não tem terra nos ouvidos. Tomara que teu ele só tenha a cara. – fez uma pausa e marotamente completou, aproximando-se e abraçando-o – E teus cabelos aloirados, e teus olhos cor de mar, e tua pele alva, e tua boca e teu tamanho. E teu cheiro, Émile."

"– Tu nem sabes se será um menino... – tentou emendar, embaraçado.– Será. – ela o interrompeu – e já posso vê-lo correndo, com as perninhas finas, roupa azul a me chamar de ‘mama’ enquanto esperamos por ti.”

Esther já o vestia quando Émile voltou a prestar atenção no presente. O ajudante-escravo ainda estava no canto do quarto, encarando a escrivaninha, claramente envergonhado pela situação. O coração do velho encheu-se de ternura. Seu filho poderia ter sido daquele jeito. Com cabelos aloirados e pele alva, e olhos azuis como os seus. Amaldiçoou todos os deuses e os destinos injustos que criavam para os homens.

Novamente sentado na poltrona e observando Esther sair arrastando o menino pelo braço, uma ideia lhe ocorreu:]

– Esther! – chamou-lhe, a voz rouca e cansada.

– O que?

– Manda o menino vir aqui quando ele estiver desocupado.

– Ele tem muito trabalho a fazer, velho. E é um preguiçoso, por isso não estará desocupado tão cedo.

– Manda-o quando puder...

– Que queres com ele, maldito?

– Nada demais, apenas preciso que organize meus livros.

– Ora, mas veja se vou ficar sem ajuda apenas para que tu fiques remexendo em papel velho! Queima estas porcarias!

– É apenas por... – a porta bateu violentamente. Esther o deixara falando sozinho.

“Demônio de saias” pensou Émile. Mas não desistiria. Pediria quantas vezes fossem necessárias até conseguir conversar com o menino.

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Uma onda de mortes estava assolando a Estalagem; o ceifeiro, insistente que era e enfrentando os débeis protestos daquela horda de corpos turrões e envelhecidos, andara coletando mais almas do que a média para aquela época do ano, e isso significava duas coisas: uma carga de trabalho que deixaria um homem adulto exaurido, pois depois de se retirar o morto era preciso preparar o quarto para um possível novo hóspede, e gritos. Muitos gritos de Esther.

A mulher estava histérica, não só com diminuição vertiginosa de hóspedes-moradores, mas também pelos constantes pedidos do sr. Émile. Entremeados nos berros da estalajadeira haviam fragmentos de informações, que Demetrius tentava juntar usando todas as possibilidades ofertadas por sua imaginação fértil. Sua curiosidade era aguçada pela certeza de que toda aquela tensão estava ligada à sua pequena pessoa, e ele não estava pronto para servir de cabo-de-guerra para um velho moribundo e uma mulher diabólica.

O quarto que limpava naquele instante fora desocupado na tarde anterior. O próprio Demetrius, quando passava para recolher os urinóis, encontrara o ancião com a cara mergulhada no prato de canja, rígido como madeira, com a pele já atingindo um tom azulado. O menino até tentou gritar, mas percebeu que sua voz não alcançaria o caminho da boca e só lhe restou sair correndo atrás de Esther.

Ele não conseguia expressar nenhum som. Ouvia-se apenas sua respiração ofegante. Tentou puxá-la pelo braço gordo. A peripécia lhe rendeu um bocado de cascudos, mas funcionou. Até mesmo a estalajadeira percebeu que ninguém ficava mortalmente pálido como Demetrius naquele momento senão ante um fato muito perturbador.

Toda a confusão armada pela última morte na estalagem só contribuiu para que os ânimos ali não fossem dos mais calmos. Era novamente dia de banho para Émile Sorel, mas dessa vez o menino não ficara no quarto sendo observado pelo velho. Esther o mandara para o cômodo que limpava naquele momento, a fim de adiantar o serviço.

Curioso que era, Demetrius rapidamente pôs-se bisbilhotar mais uma discussão entre eles:

– Por que não podes deixar o menino ajudar-me, Esther? – perguntou o velho com a voz alquebrada.

– Já te disse que será por pouco tempo, apenas quero que ele me ajude a organizar meus livros...

– Ele não vem porque eu não quero! E basta. Já cuido de ti, não dispensarei meu empregado para que se enterre neste monte de papel mais velho do que tu! Não me importune mais com isso. – e continuou resmungando, furiosa – A cada suspiro me pergunto como Najma po...

Tão distraído estava ouvindo conversa alheia que sequer percebera a bagunça estava por fazer. O barulho do balde caindo e derramando água por todo o soalho lhe causou um tremendo susto. Tentou limpar tudo rapidamente, com o coração pesado de medo, mas não houve tempo de evitar o sermão passado por Esther. A mulher gritava consigo e o menino sabia que ela conseguiria em breve arrancar sua orelha, se continuasse puxando com tanta força!

– Não pude evitar, senhora; escorreguei e acabei derrubando o balde – choramingava o menino.

– Vou te ensinar a não escorregar então, criatura inútil – esbravejou enquanto sacodia o corpo franzino de Demetrius - para que me seja de alguma utilidade! Vais limpar todos os quartos ainda hoje. Só comerás quando terminar e deixar estes buracos brilhando!

Dizendo isto, largou a criança no chão tal qual um monte de trapos e saiu tempestuosamente. Demetrius alisou a orelha, como que atestante que ainda estava no lugar certo. Respirou fundo e continuou a limpar. Era melhor que sua mãe não esperasse que sua volta pra casa cedo naquele dia.

Do outro cômodo, Émile Sorel sorriu. Era sua chance.

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Enquanto Esther resfolegava de raiva no cômodo de baixo, Demetrius sentia-se como um leitão sendo cozido. O esforço físico lhe fizera transpirar a níveis desconfortáveis, deixando suas vestes empapadas de suor. Não teria como fugir do banho se continuasse daquele jeito. Tentando adiar ao máximo seu encontro com Émile Sorel, o menino deixara o quarto do velho por último na ordem de limpeza. Encontrava-se agora encarando a entrada do aposento, com o medo consumindo suas entranhas, deixando uma sensação engraçada em seu estômago. Ele nem queria lembrar-se da tremedeira nas pernas.

Respirou fundo, e bateu na porta. Quando achou que o velho já havia notado sua presença, abriu a fechadura e empurrou a madeira meio apodrecida. A penumbra do quarto lhe permitia ver apenas vultos. O amontoado de trapos sobre a poltrona tinha uma forma quase humana, mas estava imóvel. Teria a Morte levado Sorel também?

“Oh, Santo Pai! Que eu não ache outro defunto!” pensava o menino. Ele não notava a respiração rasa de Émile. Chegou mais perto e hesitando como se estivesse prestes a cometer um pecado, sacudiu levemente o que imaginava ser o ombro do ancião.

Um resmungo débil foi o que recebeu em resposta e Demetrius achou que era prova o suficiente do despertar de Sorel.

– Senhor Sorel! Senhor Sorel! A senhora Esther me mandou para limpar o quarto. Com sua licença, senhor. Vou precisar abrir a janela –, despejou o menino, numa torrente ininterrupta.

O velho focou os olhos em Demetrius e respondeu debilmente:

– Claro, limpe à vontade, menino. Apenas deixe-me aqui na minha poltrona, pois não tenho desejo de ser movido para nenhum outro canto deste buraco.

Demetrius continuou movendo-se pelo cômodo, causando barulhos aqui e ali. O velho, agora completamente desperto, observava o menino com declarada curiosidade. Ciente do olhar firme de Émile Sorel sobre si, Demetrius preguntou-se o que havia tanto para ser observado, mas não se atreveu a emitir nenhum som além dos gemidos de esforço. Para o velho, no entanto, a visão do garoto de tez pálida, olhos cor de mar e cabelos aloirados vestindo um enorme avental azul foi o suficiente para que sua mente cansada o transportasse para outros tempos.

“ – O exército me convocou novamente, Najma – disse Émile – querem que nos apresentemos em três dias. Eu não quero ir, mulher, ma..."

"– Tu vais! – Ela disse – Tu vais porque não sabes fazer outra coisa além do que é o certo. Não te preocupas com minhas lágrimas, teu filho e eu ficaremos bem. E não ficaremos sozinhos também. Esther desistiu de acompanhar a caravana e veio ficar comigo..."

"– Esther é uma criança, criatura! Uma menina estabanada que mal sabe falar uma frase. No que te serás útil!? – O medo de que algo acontecesse à cigana fazia um arrepio gelado lhe descer pela espinha."

"– Ela será útil quando precisar ser. – disse abraçando-o. – Vai, Émile... vai e volta pra mim. Inteiro, pra ver nosso filho crescer, e me fazer mais alguns."

O meio sorriso que apareceu no rosto de Sorel foi toda a resposta que Najma conseguiu. E para ela foi o suficiente.O exército partiu para a guerra depois de três dias. E não retornaria antes de longos quinze anos”..

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– Senhor Sorel! – O velho retornou ao presente com o chamado agoniado do menino. – O senhor ainda quer ajuda com seus livros, senhor? Já terminei tirei o pó e esvaziei os urinóis e ainda temos luz caso o senhor não queira acender as velas e...

– Paz, criança. Respire. Sim, eu ainda quero que me ajudes a organizar meus livros. Basta folheá-los e sacudir-lhes a poeira. Simples, não? – perguntou o velho, com uma nota de riso na voz rouca.

– Pode fazer isso?

– Sim, senhor! Começarei agora mesmo! – respondeu Demetrius, afobadamente.

– Antes que comece, procure para mim, ali naquela mesinha, um livro com capa de couro. É um volume grande, tem um punhal na capa.

O menino fez como ordenado e pousou um livro amarelado e escrito à mão no colo de Émile. Curioso, não pôde deixar de observar a caligrafia fina e elegante que corria pelas páginas. Seus olhos brilharam quando o ancião abriu o exemplar e tocou, com quase reverência, a imagem de uma mulher muito bonita e estranhamente familiar, parada junto a um grande sobreiro.

Sorel, por sua vez, finalmente tirara a dúvida que o perseguira: ele estava certo, ela não usava os adornos e enfeites de sua família naquele dia... a Najma dona de seu coração, que ditava-lhe o ritmo dos pensamentos com os pandeiros e castanholas.

A tarde chegava a seu final e Demetrius ainda não havia prosseguido muito na organização e limpeza dos livros de Sorel. Eram muitos, amontoados por toda parte e mais empoeirados que o velho. Nem com todo o seu esforço terminaria antes do sol descer no horizonte. Enquanto se ocupava do serviço, olhava de esguelha para a figura misteriosa do ancião, que parecia estar totalmente imerso nas próprias lembranças.

Decidindo que o serviço teria que esperar para outro dia, Demetrius aproximou-se de Sorel e disse-lhe:

– Senhor, não há possibilidade de terminar a arrumação sem acender as luzes.

– Está tudo bem, menino – respondeu – Alcança uma pequena bolsa de couro na mesma mesinha que tu pegaste este livro. Traz para mim.

Demetrius obedeceu e viu o velho puxar uma moeda de prata e lhe entregar. Surpreso, o menino não sabia o que responder. Sorel aproveitou a oportunidade:

– Pela tua boa-vontade para com meus livros. Vens aqui às tarde para continuar a organização e te darei mais – ele disse.

Um olhar eufórico e um agradecimento balbuciado fora a resposta que Émile conseguira. Ainda que, perdido em pensamentos, tenha deixado passar a chance de conversar com a criança, o velho soldado não desistiria tão fácil. As semelhanças com o que fora dito por Najma há tanto tempo atrás, combinadas com o ar curioso e a relutância de Esther eram evidências demais para Sorel desistisse tão facilmente.

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Demetrius voltou na tarde seguinte, após terminar o serviço nas cozinhas e buscar água em tempo tão primoroso que a estalajadeira perguntou se ele estava possuído. Despistá-la havia sido relativamente fácil: para a mulher, ele estava agora terminando de limpar os quartos de hóspedes. Se alguém considerasse a ânsia de receber mais algumas moedas por um serviço simples possessão, então sim. Com certeza havia um demônio sussurrando-lhe coisas, pensou. E repreendeu-se logo em seguida, ao lembrar-se da quantidade de pais-nossos e ave-marias que Pare Julius o faria rezar após as confissões.

Seu encontro com Sorel se dera de forma muito parecida com o dia anterior. Ao entrar no quarto, o velho soldado estava sentado em sua habitual poltrona, com o livro encadernado em couro ao alcance das mãos, respirando rasamente. O menino decidiu por não incomodá-lo e começou sua maratona de pó e mofo. Enquanto organizava o amontoado bibliotecário de Sorel, ia pescando uma frase ou outra, tentando exercitar o que o Padre ensinava na escola dominical.

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O arrastar de um banco mais pesado arrancou Émile de seu sono, mas o velho decidiu por não dar sinais de seu despertar. Passara boa parte da noite refletindo se havia realmente a possibilidade de ter encontrado um rebento de seu sangue de forma tão banal. No fim das contas, percebeu que não importava, tão desesperado estava para não ter sobre si o peso de estar sozinho no mundo.

Não era acalentador saber que a única criatura a partilhar das doces lembranças de seu passado idílico era uma velha amarga, cuidadora de uma estalagem pueril numa cidade ainda mais patética. Não! O ceifeiro viria busca-lo em breve, sabia, e Sorel recusava-se gastar seus últimos esforços afundado n’amarguras tão vis.

Pousou a mão carcomida pelo tempo no livro encadernado em couro que repousava em seu colo, e chamou a criança:

“Menino”

“Sim, senhor?”

“Deixa isto de lado..."

“Mas senhor Sorel, falta pouco e...”

“Deixa! Te ensinaram as letras?"

“Sim, senhor! Padre Julius diz sempre que está muito orgulhoso das crianças da escolinha, pois aprendemos rápido e ...”

“Então senta aqui perto, e lê este livro para mim. Só um pouco, para não te atrasares. Dar-te-ei a moeda como combinado..".

Anos mais tarde, Demetrius diria que foi naquele momento, naquele ínfimo espaço de tempo, que sua vida mudou. Quando, hipnotizado pelo brilho enternecido e um tanto quanto desesperado dos olhos do soldado, puxou um banquinho que entortava sob o peso de papéis ainda desordenados, tomou o encadernado das mãos do velho e pôs-se a ler.

Por muitas tardes, sua mente de menino, tão ávida e livre, registrou os detalhes da história trágica de amor e dor que, para o resto do mundo, era apenas resultado da falta do que fazer de velhas beatas. Seu coração, ainda puro e deslumbrado, doeu ao narrar em voz alta a morte, a perda, o descompasso no tempo causado pelo horror da guerra que separou, nesta vida, almas destinadas. Ora! Qual não foi sua surpresa ao reconhecer a velha bruxa estalajadeira na menina que cresceu rápido demais, brutalmente, ao ver a irmã brava e intrépida ser molestada e despedaçada às suas vistas. As marcas da guerra jamais deixaram Esther, e também não arrefeceu a culpa que ela depositava em Sorel. Nada a convenceria de que, estivesse o velho junto á irmã, Najma teria outro destino; um no qual continuava viva.

E ele chorou. Suas lágrimas caíram como orvalho em manhã nova, ao sentir a dor do soldado que retorna à casa e descobre que nada mais possui. Nem ninguém.

Ele deixou que o velho o pensasse seu descendente, parte de seu sangue. Era loucura, é verdade, mas ainda menino, Demetrius descobriu através de Sorel e a estória contada no velho livro o quão dolorida é a solidão. O quão desesperador é a certeza de se achar sozinho em um mundo morto. Como é terrível ter parte da alma decepada de si sem direito a adeus.

Por muitas tardes ainda os encontros se repetiram. Sempre depois dos trabalhos de Demetrius, aproveitando as nesgas de luz da tarde. A leitura, no início gaguejante e insegura, tornou-se confiante e cadenciada. Ainda mais depois de perceber o repentino interesse da estalajadeira na situação das portas naquele canto da pensão.

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Demetrius bateu à porta do velho soldado Sorel como era de seu costume nos últimos tempos. Sua anunciação era apenas uma formalidade, sabia que Émile não se levantaria. Enveredou-se pelo pequeno quarto já pensando em perguntar ao ancião se poderiam escolher um outro livro para as leituras vespertinas.

Mas o ar estava diferente naquele dia. Mais sorumbático, mais frio. Quase ouvia-se um lamento choroso. Com os pelos do corpo arrepiados, Demetrius aproximou-se da figura imóvel, mas não conseguiu reunir coragem para tocá-la. Um sorriso débil enfeitava a face envelhecida.

Os gritos de Demetrius, intercalados pelos soluços sofridos, puderam ser ouvidos por toda a estalagem.

Por sobre a mesinha , um bilhete dizia:

“Tu foste meu acalanto derradeiro, menino.”

G A Sekhmet
Enviado por G A Sekhmet em 30/12/2012
Reeditado em 30/12/2012
Código do texto: T4059606
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