O mundo e seus fins
Acácia morava no 701 e Caco no 703.
Mas não eram apenas os números que os separavam. Havia um abismo invisível entre os dois que só poderia ser medido pela metafísica. Ela era uma septuagenária que punha tarô. Ele tinha 38 anos e era cético como uma chapa de aço.
A mulher, de uma credulidade eclética, lia os trânsitos diários do seu mapa astral e rezava novenas. Sua paixão eram os poemas. Emocionavam-na as catacreses, as símiles, as metonímias... Monet ensopava-lhe os olhos. Criada no subúrbio, ascendera à classe média, mas era meio desclassificada. Morava com um chiuaua. O marido morreu e os filhos se formaram e moravam no exterior; eram uma cria que a desapontava. Estava apreensiva. Tinha convicção de que o mundo acabaria no dia 21 de dezembro de 2012.
O homem era um relógio: mantinha sua rotina milimetricamente. Fumava charutos Hoyo de Monterrey quando chegava do emprego público. Assinava três jornais e amava exatas. Odiava ficção e metáforas. Nas artes plásticas, gostava de quadros que retratavam com perfeição; pinceladas inconscientes o deixavam furioso. Apreciava algumas esculturas. Classe média alta, prezava o conforto e o prazer. Morava só. Praticava sexo virtual e jogava sudoku. Seu único amigo era um jornalista aposentado, artificialmente cínico. Estava de saco cheio da histeria coletiva que aguardava a besteira do fim do mundo em 21 de dezembro de 2012.
O dia 21 de dezembro de 2012 amanheceu como todos os outros. O cinza da madrugada sendo arrastado como um lençol sob a superfície da cidade onde Acácia e Caco moravam. As manchetes de todos os jornais, abordavam o último evento da história: Le Monde, da França destacava Le monde se termine aujourd'hui ; El país, da Espanha: Los mayas y el fin del mundo; The Guardian, da Inglaterra: The world is over e o Pravda da Rússia Мир не закончится.
Noticiavam também alguns casos isolados de seitas e místicos que faziam seus rituais e preparativos. O relato mais excêntrico foi o de um grupo de 300 pessoas no Norte dos EUA que, plagiando Sócrates, tomou chá de cicuta para abreviar sua morte e pegar os primeiros lugares na fila do além. No mais, a manhã e a tarde do último dia do ano de 2012 transcorreu com piadinhas, algumas ad nauseamente repetidas e outras de muito mau gosto, como o caso do agente funerário que comentou em rede nacional:
- Poxa, justamente quando teremos a oportunidade de ficar ricos, não estaremos mais aqui!
Faltavam quinze para a meia-noite.
Acácia estava à janela que dava para a praia. Seus olhos fitavam o horizonte esfíngico. Os lábios murmuravam mantras e mandingas... sibilantes simpatias... rezas repetidas. Fumegava a casa com incenso de mirra. Pensava no seu passado, no quanto vivera como um polvo. Adaptando-se como geleia a todo contexto que seu rumo encontrava. As ventosas grudando e sugando o máximo de significado que podia. O sumo da existência corria nas suas veias e alimentava seus ventrículos. Seu ventre colaborara doando entes ao mundo. Embora sendo caótica não dera à luz Titãs, mas seres tão superficiais como o verniz. Era uma mulher preparada para partir. Esperava bruta como árvore o intangível machado incógnito que a deceparia. Sentia que sua alma ganhou tanta consistência semiótica que subsistiria de alguma forma.
Caco também olhava o mar. Queria presenciar o horizonte e a lua pálida. Desejava testemunhar o vexame dos crentes. Deu um trago no Hoyo de Monterrey e molhou a boca na vodka. Um simulado sorriso irônico nos lábios tentava conter uma gargalhada enquanto soprava a fumaça pelo canto da boca. Descendente de uma família de burgueses iluministas, acendia velas à razão. Desenvolveu uma misantropia, à medida que suas expectativas eram frustradas. O homo sapiens sapiens era um macaco mutante idiota que era viciado no ópio do povo, a religião. Como seus pais, mantinha uma revolta silenciosa, mas não sabia a quem direcioná-la visto que era ateu.
Faltavam dez segundos para a meia-noite.
A grande maioria dos terráqueos, mesmo não admitindo, fazia uma contagem regressiva para o grande fim. Uma minoria absolutamente certa da grande catástrofe se escondia em abrigos subterrâneos com a devida provisão. Em muitos hospícios, os pacientes viravam as camas de pernas pro ar, ameaçavam derrubar portas e quebrar grades, obrigando assim a direção a solicitar ajuda policial para evitar que, em vez do fim do mundo, ocorresse o fim da ala psiquiátrica. Devido aos surtos maníacos e psicóticos, doses descomunais de sossega-leão foram administradas aos pobres loucos. Alguns mais mansos apenas resmungavam pelos corredores, delirantes arautos de uma alucinação coletiva. Não se podem desconsiderar os casos absurdos daqueles que, usando da desculpa do apocalipse, praticavam algum desejo recalcado: não foram poucos os pedidos de demissão, divórcio e confissões públicas das mais despudoradas parafilias, como o caso do Prefeito de Corte do Nóia que admitiu em praça pública sua tesão por anões e seu caso com a miniatura palhaça do circo local, Consuelo Encarnación. Houve também um casal de exibicionistas que foi transar na Apoteose do Samba, no Rio de Janeiro, à mostra de garis e mendigos, que aplaudiram a apoteose do ato, após o gemido decisivo.
Meia noite e um segundo, horário de Brasília.
Nada de extraordinário aconteceu. A respiração de Acácia e Caco podia ser ouvida no silêncio denso que só foi cortado pelo zunido de alguns carros na avenida. O mundo ainda existia no seu arrastado e rotineiro mistério.
Caindo em si, Acácia balançou a cabeça e sorriu. Aos poucos uma incontida alegria transbordou em canções e danças. Ela segurava as saias pelas mãos e rodava pela sala. Estava viva. Ainda conheceria novos sabores, odores e texturas. Ainda tiraria fotos de ruínas e flores. Ainda haveria a possibilidade de novos amores. Ainda haveria mais tempo para a carne, e a matéria persistiria em condensar o mundo das ideias onde o Deus ou deuses, espíritos ou etéreos seres bocejavam sem se preocupar em acabar com a história da Terra. Ainda haveria muitas sementes. A Natureza ainda não havia cumprido o seu fim.
Caco sacudiu a cabeça acordando da sua curta introspecção. Nenhum meteoro errante colidiu com o planeta atmosférico. Nenhum terremoto singular criou tsunamis genocidas. Os vulcões mortos não ressuscitaram vomitando lavas escaldantes. Os continentes permaneciam preguiçosamente quase rígidos, nos seus suaves e mínimos movimentos tectônicos. Caco vociferou e esmurrou a janela, espatifando-a em centenas de lascas. “Droga!” – berrou “Essa merda de mundo nem para acabar serve! Afinal qual a finalidade de tudo isso?”
Lá embaixo, sob a marquise, uma cadela paria o seu primeiro filhote numa improvisada caixa de papelão onde se lia:
CUIDADO. FRÁGIL.