Somos Uns Putos

Olhava o horizonte doentio com os cotovelos arrimados no parapeito, com o queixo arrimado na palma da mão esquerda, com um cigarro pendendo entre o dedo médio e o polegar. A cinza ia se acumulando, crescendo, se envergando, quebrando, caindo, sumindo ao vento. Roçava o calcanhar na canela, espantando os pernilongos. Bocejou incontáveis vezes esperando algum arroubo poético, alguma coisa inteligente para dizer à mulher que, às suas costas, jazia na cama, nua, suada, com esperma escorrendo pelos culotes. Não que precisasse; só queria provar a si próprio que ainda havia em si alguma espécie de encanto que não fosse a avidez em lamber buracos. Mas, nada. A paisagem repetida nada a tinha dizer senão o mesmo: loucura, loucura iminente; vidro moído sendo varrido por velhas pelas manhãs, caminhões cuspindo uma trilha de fumaça preta na cara das crianças, dos futuros assassinos e estupradores; uma busca incessante pela satisfação de um autoconhecimento que não vinha nunca nos poucos, parcos intervalos que sobravam para buscá-lo. Deu a última tragada e piparoteou a guimba prédio abaixo. Tirou o ricto de desgosto, ensaiou um sorriso e deu as costas ao mundo. Fitou a fulana em sua cama. O de sempre assaltou-o: a avalanche de perguntas. Por que ela estava ali? Não acontecia com especificamente aquela mulher, mas com a esmagadora maioria das ocasionais amantes. Pressentia que, por aquela que encontrasse as respostas, apaixonar-se-ia. Amarrar-se-ia. Enlouqueceria. Atravessou o quarto - sendo seguido pelo olhar terno da mulher - apreciando o balançar do pau mole e foi ter com o espelho da penteadeira herdada da avó nordestina. Pigarreou. Soltou:

- Já se perguntou, Mia, o porquê de estar com uma pessoa depois que já saciou suas nuances da carne?

- Sempre me pergunto, Mio.

- Encontra as respostas?

- Sempre encontro.

- São sempre as mesmas?

- É sempre a mesma.

- E qual é ela?

- Um amontoado de sentimentos e sensações, momentâneas ou não... É uma resposta que engloba várias características; algo compactado, sabe?

- Tipo um arquivo .rar?

- Isso. - Riu ela - Tédio.rar!

- Hum. - grunhiu ele, pensativo.

Saborearam o silêncio que se seguiu. Mia sabia, pelo semblante de Mio, que um vórtice de constatações que eram suscitadas-ignoradas-arquivadas girava em seus miolos.

- Eu sinto um troço estranho por você, Mia... A pergunta que sempre me faço depois que transamos, que nos arriscamos, é: por que isso não pode acontecer sempre? Sem que isso pareça ser um crime hediondo. Não, cala a boca - disse, quando Mia fez menção de interromper o solilóquio -, escuta, caralho: eu gosto muito de você. E isso me assusta. Assusta porque sei que confessando isso estarei pondo o que temos a perder, porque a graça do que temos é a liberdade da prisão que é sermos o que somos nas nossas ambigüidades, na nossa contextualidade social, nos nossos mundinhos serenos, coloridos, tranqüilos e entediantes.

Neste ponto, põe a mão na testa e deixa os dedos se enveredarem pelos cachos desalinhados, já arrependido de ter começado a falar. Porém, não satisfeito. A merda já estava feita. Que se fodesse. Que era Mia? Mais um receptáculo de projeções! Mais um amontoado de carne, nervos, histerias, fluídos e cocô.

Mas ela era tão... Tão filha da putamente diferente. Uma gostosa. Boa de se comer com a boca, com as mãos, pau, ouvidos, olhos; um banquete, um verdadeiro banquete. E ele gostava de comer. Tinha fome. Fome das dualidades carne-carinho, amizade-tesão que tinha com ela, que faziam um bem tácito e concomitantemente eloquente a ele. Por que tentar privar-se disso com um discurso romantizado? Ficou mais confuso do que já estava. Dirigiu-se à janela e voltou a fitar as luzes cintilantes da cidade-cão.

"Por que na minha vida as coisas simples têm de ser envernizadas pela dificuldade, porra?", gritou pra si próprio.

Escutou, ao longe, passos sendo dados às suas costas. Só se deu conta de que era Mia quando seus mamilos, enrijecidos pelo vento, tocaram suas omoplatas e seus braços cruzaram-se em seu peito; sentiu a nuca ser beijada.

Esperou que alguma coisa fosse dita. Nada. Não passaria daquilo. Cometera um equívoco se escarnecendo daquele jeito. Sentiu pena de si mesmo. Depois vergonha. Depois ódio de Mia, da filha da puta cruel da Mia, da fominha de rola da Mia; Mia, que desfilava suas unhas pelo seu tórax, pela sua espinha, pelas suas nádegas; foi quando se deu conta que, com os braços para trás, bolinava o cu dela. Sentiu a ereção contra a parede fria. Virou-se. Beijaram-se. Era assim que acontecia. Era assim que sempre aconteceria.

Estavam fadados ao erro de terem um ao outro como ápice da estima em outro ser humano e não podiam arruinar algo tão grandioso com as pequenices do sentimentalismo, do que errônea e secularmente julgam ser o amor.

26/12/2012

Rachael Yamagata - Sunday Afternoon

Rafael P Abreu
Enviado por Rafael P Abreu em 27/12/2012
Reeditado em 27/12/2012
Código do texto: T4054718
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