Inquietação
Naquela manhã de dezembro, acordou inquieto. Não sabia explicar a razão, mas não dormira bem. Revirara-se na cama a noite inteira, como se algo o perturbasse. Não tinha ideia do que poderia ser. Era feliz, pelo menos achava que era. Tinha uma família unida, um bom emprego, amigos com quem podia contar. O dinheiro era pouco, mas não tinha dívidas (na verdade, tinha até algum guardado no banco para caso de emergência).
Levantou-se. Constatou que a esposa ainda dormia tranquilamente na cama que dividiam há tantos anos. Sorriu com o canto da boca. Sentia uma ternura imensa por aquela criatura que lhe dera o maior dos tesouros: seus quatro filhos. Dois meninos e duas meninas... na realidade, dois homens e duas mulheres, com suas próprias vidas. Mas, para ele e a esposa, seriam sempre suas crianças.
Foi até o banheiro, tomou banho sem pressa. Afinal, ainda havia tempo para chegar ao trabalho. Acordara muito cedo. Ao sair do banho, encontrou a esposa de pé, preparando-lhe o desjejum. Olhou para ela com mais ternura ainda. Afinal, ela era sua companheira de jornada. Quantos momentos alegres e tristes dividiram. Certamente, sua viagem não teria sido a mesma sem ela.
Enquanto ele comia, a esposa ia adiantando as tarefas domésticas. Fazia um ou outro comentário sobre algum vizinho, sobre o preço dos alimentos, mas, ele nem escutava. Seu dia seria atribulado, muitas ocupações, não tinha tempo para aquele tipo de conversa. Olhou o relógio. O tempo passara depressa. Apressou-se em terminar o café para não ouvir aquelas histórias.
Despediu-se da esposa com um beijo e foi trabalhar. Inacreditavelmente, o trânsito não estava engarrafado. Sorriu aliviado. Não correria o risco de chegar atrasado ao trabalho.
A inquietação que dormira com ele toda a noite desaparecera por completo. Tanto, que nem se lembrava mais dela. Ligou o rádio e, para melhorar seu bom humor, sua música preferida começou a tocar. Ele abriu um largo sorriso e começou a cantar junto. Fazia tempo que não escutava aquela canção.
Estacionou o carro e entrou no edifício de quatro andares, onde trabalhava desde que se casara. Era um bom emprego, o salário não era ruim, seu chefe era um sujeito bom, os colegas o tinham na mais alta estima. Enfim ,mais uma vez, constatou que não tinha do que reclamar.
De repente, aquela inquietação que invadira seu sono e que o acordara mais cedo, retornou. Começou aos poucos, como uma leve palpitação, mas foi aumentando, aumentando, até ficar quase insuportável.
A princípio, pensou em ir a um médico, mas a ideia logo foi abandonada, porque tinha certeza de que seu corpo estava são. Era algo mais profundo, era algo que vinha da alma. Não sabia explicar com clareza, mas a sensação que tinha era a de que a sua vida perfeitinha tinha alguma coisa de errado.
Em poucos minutos, sua inquietação se personificou em uma loira que acabara de chegar ao escritório. Era uma cliente que ele atendera há algumas semanas e que, desde então, fazia uma visita semanal de cortesia, para agradecer os excelentes resultados que obtivera, por causa das dicas que ele lhe dera.
Comparecia religiosamente ao escritório todas as quartas. Enquanto ela se aproximava, os batimentos cardíacos dele se aceleravam e a saliva desaparecia milagrosamente da sua boca. Ela chegou em frente a sua mesa e com um olhar malicioso, perguntou se podia sentar. Ele tentou conter seus instintos animalescos e, num tom quase aristocrático, respondeu-lhe, apontando a cadeira: "Por favor...".
Ela começou a falar o mesmo discurso que repetia em todas as visitas. Como se fossem ensaiadas, as frases saíam com todas as pausas e entonações iguais todas as vezes. Ele não se importava, já tinha decorado o texto. E, não era isso que lhe interessava.
Enquanto ela cuspia suas falas ensaiadas, ele a observava. Sem dúvidas, era uma mulher apetitosa. Mas, era o único adjetivo positivo que conseguia relacionar a ela. Sua beleza era vulgar, do tipo que seria facilmente confundida com uma prostituta de rua. Exagerava na maquiagem, as roupas eram muito curtas, decotadas, justas, transparentes. Definitivamente, jamais teria algum relacionamento sério com ela, mas sabia que não resistiria a um convite dela para se aventurar no mundo dos prazeres, caso ela o fizesse.
Sabia que ,mais dia menos dia, isso aconteceria. Ela não iria semanalmente procurá-lo sem motivo aparente, se não tivesse más intenções. E, por mais que imaginasse esse dia, não sabia qual seria sua reação. Por um lado, seus instintos de homem uivavam. Por outro, a fidelidade com que conduzira seu casamento até então, apesar de ser motivo de chacota entre os amigos, era orgulho para ele.
Absorto em seus pensamentos, não percebeu que a loira havia lhe feito uma pergunta. Como ele não respondera, ela repetiu, tocando de leve seu braço. Despertou de seu transe, ouvindo a tão aguardada e temida pergunta: "Vamos sair depois do expediente?". Não pensou duas vezes: "Vamos. Largo às cinco." . Combinaram que ele iria até sua casa. Deu-lhe o endereço e partiu deixando o rastro de seu perfume forte no ar.
O resto do dia para ele foi uma mistura de ansiedade e culpa. Jamais traíra a esposa, mas, pela primeira vez, não resistiu aos encantos de outra mulher. Às quatro horas, telefonou para casa, avisando que chegaria mais tarde, pois o chefe lhe pedira um serviço extra.
Antes das cinco, saiu do escritório. Sua ansiedade não o deixara esperar. Chegou ao endereço que fora indicado numa folha de papel perfumada. Era uma casa grande, antiga. Tocou a campainha. A porta se abriu. Seus olhos extasiados viram a loira ainda mais sexy, quase despida, com uma lingerie vermelha.
Pediu-lhe que entrasse e ficasse à vontade. Entre um gole de vinho e outro, começou a inventar histórias sobre ele e as mulheres. Não podia dizer a ela que, até então, fora fiel à esposa. Ela iria lhe achar um tolo.
Quanto mais bebia, mais sua imaginação era inundada por histórias fictícias. Via que a loira estava cada vez mais entusiasmada com suas histórias e, para deixá-la ainda mais acesa, deu o golpe de misericórdia: a esposa não tinha os encantos de antes, por isso, contava os dias para se separar dela.
A noite que prometia ser um terremoto de prazer transformou-se, de repente, em um vendaval de fúria e destruição. A esposa, que ouvira tudo escondida, afastou a cortina e apareceu. Aos gritos, revelou-lhe o plano que bolara para descobrir as traições das quais desconfiara a vida inteira. Contratou a tal loira, ensinou-lhe como seduzir o marido, com uma ponta de esperança de que não conseguisse. Atônito, ele tentou se explicar, mas ela não o deixava falar. Disse que só aparecesse em casa para pegar suas coisas. Aos prantos, foi embora.
Ele, arrasado, olhou a loira, que, naquele momento, parecia o demônio em forma de gente.
Levantou-se e saiu cabisbaixo. Ainda não acreditava no que havia acontecido: perdera um casamento de anos por nada. Jamais havia traído a esposa, no entanto, ela o via agora como um cafajeste que a enganara a vida inteira.
Tentou culpar a loira por ter destruído seu relacionamento. Tentou culpar a esposa por não ter acreditado nele e armado aquela arapuca. Mas, no fim de tudo, descobriu quem era a verdadeira culpada: aquela inquietação que corroía sua alma, dizendo-lhe que sua vida perfeita era uma mentira. Constatou que realmente era. Há muito tempo não era verdadeiramente feliz. Acomodara-se.
Ergueu a cabeça, sorriu e caminhou até o carro. Ligou o rádio e sua música preferida estava lá de novo. Seguiu pela estrada, cantarolando e disposto ao recomeço propiciado pela, agora bem-vinda, inquietação.