O meu melhor presente de Natal
O meu melhor presente de Natal
Estávamos em 1990, o ano letivo havia começado e a escola estava agitadíssima. Os alunos chegavam, curiosos, pra conhecerem a “tia” e alguns, os mais pequenininhos da Educação Infantil, choravam com medo, se agarravam às mães pois não queriam ficar na escola. Tinha pena e observava as professoras tentando conversar com as crianças, acalmá-las, na tentativa de convencê-las a entrar para a sala de aula.
Era um suplício, saia de perto, indo para minha sala e como esta tinha uma janela que dava para o pátio de entrada, escutava os choros, a gritaria, e isso me deixava muito nervosa e tensa, pois ficava pensando naquela criança e o quanto ela tinha medo do desconhecido, aliás isso era normal, mas eu, ainda hoje, não me acostumei, apesar dos meus mais de 30 anos de trabalho.
Os dias iam se passando e observava que o comportamento dessas crianças aos poucos ia se modificando e então percebia que elas se adaptavam rapidamente, se afeiçoando às professoras, fazendo amiguinhos, brincando, pulando e se sentiam felizes.
Entre as muitas crianças que chegaram à escola pela primeira vez, naquele ano, um menino me chamou a atenção, o Jorge Vinícius
Ele era diferente das demais crianças, gritava, era agressivo, logo, logo criou inimizades com todos os colegas.
O tempo passou e apesar de seu temperamento, Vinicius continuou na escola, passando por diversas classes, mas seu comportamento não melhorava e por diversas vezes o via na secretaria de castigo, emburrado, esperando seu responsável.
Todos tentavam ajudar o menino, mas ele não conseguia escutar ninguém, parecia estar sempre revoltado com alguma coisa, foi encaminhado à psicóloga, mas, infelizmente, pouco adiantou . A mãe, uma criatura humilde não sabia mais o que fazer, o pai bebia e juntos tentávamos procurar uma solução para o bem dessa criança.
Quando eu passava por ele, estava sempre balbuciando alguma coisa que eu não entendia, por vezes olhava pra mim como se quisesse falar tudo o que estava sentindo. Mas ele não conseguia.
Eu sentia que aquele menino precisava de muita ajuda...
Vinícius chega a seu último ano na escola, a 4ª série e dessa vez fica na minha turma, sob minha responsabilidade. No início de cada ano era sempre um problema, quem iria ficar com o Vinícius?
Pra mim era um grande desafio e esperei o início das aulas.
No primeiro dia, Vinícius deu o ar de sua graça. Entrou na sala cantando e não queria fazer nada. Só bagunça. Com o tempo, passou a ser um líder negativo para os colegas, uns o admiravam, outros tinham medo dele e assim ele manipulava toda a turma.
Eu pensava... tinha que fazer alguma coisa.
Comigo por perto ele não fazia nada, até que parecia gostar de mim, já chegava até compartilhar alguns problemas familiares comigo, mas bastava eu me afastar que já havia uma confusão, onde ele sempre estava metido.
Um dia reparei que o Vinícius tinha uma voz de tenor, maravilhosa, pois passou a entrar na sala cantando ópera ou pelo menos tentava, talvez para ser notado.
Um belo dia disse a ele:
- Gostei, sua voz é muito linda, vamos combinar assim, todo dia você vai cantar um trecho de ópera assim que nós entrarmos na sala de aula.
Ele riu, ficou todo sem graça, mas assim aconteceu. Todo dia o Vinícius cantava e eu e a turma aplaudíamos.
Esse fato se tornou constante e o Vinícius se sentindo importante. Quando ele faltava à aula , todos sentiam falta do vozeirão do garoto.
Aos poucos, tornou-se um aluno melhor, educado e interessado nas tarefas. Passou a ser mais amigo, ajudar os colegas e colaborar comigo. Descobri que ele gostava de desenhar e volta e meia eu pedia que me ajudasse nos murais da sala de aula.
Em Português logo se destacou, fazia umas produções de texto de dar inveja em muita gente grande, era habilidoso e criativo, mas em matemática tinha muita dificuldade.
Então resolvi colocar música na Matemática e qualquer assunto era introduzido com música, não é que deu certo? Muitas vezes, fazendo teste ou prova, eu o ouvia cantar baixinho, acredito que era para relembrar a matéria.
O tempo passou e estava chegando o fim do ano e com ele a Festa do Natal. Resolvemos, então, fazer um teatro.
Quero participar! – gritou o Vinícius.
Adaptei um peça de Natal chamada “A Loja de sapatos” que falava de um comerciante que vestido de Papai Noel distribuía calçados para os mais necessitados na noite de Natal. Contagiava a criançada, quando cantava ópera pra todo mundo ouvir e aí é que entraria o Vinícius.
O garoto se empolgou com a peça teatral e me ajudou com a seleção de músicas para o teatro. Foi gratificante ver aquele garoto colaborar, ensaiar, mostrar todo o seu potencial.
Os ensaios eram animados, Vinícius com seus desenhos programou todo o cenário da peça natalina, com a minha ajuda e dos colegas.
Chegou o grande dia, tudo pronto, o cenário estava uma beleza, muitas luzes e alegria. Na platéia estavam todos os professores da escola e os responsáveis pelos alunos.
Começou o grande espetáculo e Vinícius ao fundo fazia a trilha sonora com sua voz maravilhosa acompanhada por um teclado, tocado por um sobrinho meu que se dispôs a nos ajudar.
O garoto cantou músicas clássicas, mas quando no final, junto com os demais alunos em coro, ele fez o solo da “Noite Feliz”, foi uma emoção coletiva e muitos choraram.
Ali naquele momento, eu disse pra mim mesma – “Valeu a pena.”
Vinícius sai da escola e foi para outra escola cursar a 5ª série, me senti aliviada e com a certeza do dever cumprido.
Nunca mais soube notícias do Vinícius, às vezes me via pensando nele – “Como e onde estaria?”
O tempo passou e há bem pouco tempo, ensaiando outra turma para a festa de Natal, um toque no meu ombro me fez virar e me deparei com a mãe do Vinícius que me olhava com seus olhos serenos e com um sorriso bonito, falando em seguida:
- Professora, lembra de mim? Trouxe um presente de Natal para a senhora.
Eu respondi sem graça e ao mesmo tempo admirada.
- Claro que me lembro, como podia esquecer? E o Viní...e antes que acabasse de pronunciar o nome do menino, a senhora me respondeu com toda humildade.
-A senhora transformou o meu filho, orientou-o, valorizou o que ele tinha de melhor, hoje ele estuda música e trabalha com desenho, tudo isso ele deve a senhora que acreditou nele. Aí está o Vinícius!
Ao olhar mais adiante avistei-o chegando, bem trajado com uma criança no colo e uma pelas mãos. Ao chegar perto de mim, em silêncio, deixou as crianças com sua mãe e me deu um abraço contido e nós dois choramos ali parados. Apresentei-o aos meus alunos que presenciaram tudo e lhes disse:
- Este rapaz foi meu aluno e também foi o meu melhor presente de Natal!
E todos bateram palmas...