O espião

Havia suspeitas de que alguém espiava a casa por trás do muro. O vulto foi visto pelas crianças que assistiam à tevê na sala. No escuro, pela janela, conseguiram distinguir só um par de olhos arregalados e uma boca bem aberta, que tanto podia conter um sorriso sarcástico ou uma interjeição de espanto. As crianças gritaram e apontaram para o lugar onde estaria o espião. Procurei o revólver, peguei uma lanterna e saí para o pátio. Fazia frio e uma espessa névoa começara a se formar, numa típica paisagem de inverno.

Encostado à parede, caminhei por entre os arbustos. Alguns estavam quebrados, como se pisados. Ao lado deles, havia uma pegada enorme. Cabiam meus dois pés dentro da marca no chão e sobrava espaço. Um calafrio percorreu-me o corpo. Não parecia ser vestígio humano. Voltei após alguns minutos com uma expressão de alívio no rosto e, tentando manter a voz firme, anunciei:

- Não há nada lá fora.

A notícia não tranqüilizou ninguém. Pelo contrário, trouxe mais desconfianças.

- E se o estranho estiver escondido?

- E se aguarda uma oportunidade para entrar na casa quando todos dormirem?

- E se voltasse no dia seguinte?

As crianças não paravam de fazer perguntas e não atendiam à ordem de irem dormir. Lembravam dos olhos a espreitá-las e da boca escancarada. Permiti a luz acessa e a porta do quarto aberta, mas só conseguiu convencê-las quando prometi passar a noite acordado na sala. Quando todos se recolheram, deitei no sofá, puxei o cobertor até as orelhas e guardei o revólver sob o travesseiro, disposto a esperar.

Esperar o quê? O vulto poderia ser uma alucinação infantil. Eu próprio tivera visões semelhantes quando menino. Lembrei do pai dizendo que balas de revólver não matam seres de outro mundo. Ele não tinha armas. Quando fiquei adulto e comprei uma, ele ficou aborrecido comigo. Fez um gesto de descontentamento, disse cuidado, e nunca mais falou no assunto.

A cidade já fora tranqüila. Não que a tranqüilidade tivesse desaparecido. Ainda se podia dormir com os vidros abertos, casos de furtos ou arrombamentos eram raros. O revólver nunca fora usado. Comprara-o numa viagem à Capital. Achei que me sentiria mais seguro lá com uma arma na cintura. Falava-se da violência nos jornais, nas rádios e na televisão. As vítimas eram, na sua maioria, pequenos empresários ou profissionais liberais chegados do interior a negócios ou para freqüentar cursos de especialização. Eu me incluía nesse perfil. Não fui atacado, felizmente, e acho que se fosse não saberia usá-la.

Alisei o cabo do revólver embaixo do travesseiro e senti vergonha por estar naquela situação.

- Tu ainda estás aí? – ouvi o caçula das crianças gritar do quarto.

- Sim, respondi, pode dormir sossegado, não há nada lá fora.

Quando falei isso, lembrei da pegada no chão. Quem teria o pé daquele tamanho? Mas será que era um pé, mesmo? Estava escuro, devia estar impressionado com o susto das crianças e me deixei enganar pela imaginação delas. No fundo, sabia que eu era um covarde. As crianças não precisavam saber disso.

O caçula fazia eu lembrar meu pai: tinha o queixo quadrado, com um furo no meio, e o olhar inquiridor. O pai saberia contornar melhor que eu esta situação. Contaria histórias para tranqüilizar as crianças, e permaneceria no quarto até que todas estivessem dormindo. Depois, apagaria a luz, trancaria portas e janelas e se recolheria aos seus aposentos. Nunca recorreria a armas. O pai usava chapéu. Na imagem dele que guardo na memória, ele sempre aparece com chapéu. Tinha apenas uma tirinha de cabelos e usava chapéu porque sentia muito frio na cabeça. Era preto, com a aba virada para baixo. Raro era ver o chapéu do pai descansando no cabide. Ele quase nunca tirava o chapéu. Quando isso acontecia, era uma festa. Eu gostava de pegar o chapéu para brincar. Pegava escondido. Se ele descobrisse, ralhava:

- Chapéu é coisa de homem, não de guri .

O chapéu do pai impunha respeito.

O pai usava bigode. Na imagem que guardo dele, ele sempre está de bigode. Permanecia horas à frente do espelho, aparando o bigode. Primeiro, ensaboava o rosto, raspava a barba. Passava a mão para verificar se ficara liso. Depois, dedicava-se ao bigode. Com uma tesoura pequena aparava até deixar fino nas pontas e encorpado no meio. Eu o imitava. Ensaboava o rosto, limpava com a toalha, deixava bigode de espuma. Ele sorria:

- Bigode é coisa de homem, não de guri.

O bigode do pai impunha respeito.

Levantei e fui à estante próxima à janela. Examinei os livros de memórias que o pai havia escrito. Cabiam em cinco volumes. O pai os havia forrado com um papel verde-musgo e colocara em dourado o título Memorial dos Marques. Os relatos referiam-se ao período entre 1950 e 1997, ano anterior ao falecimento dele.

Somos três irmãos. Eu, o mais novo. Antes, vieram duas mulheres. Retirei da estante o primeiro tomo. As anotações revelavam o orgulho do pai em 4 de maio de 1962, data em que nasci ( por fim um guri nesta casa para me acompanhar ao futebol, ele escreveu). Se adivinhasse que ao crescer me tornaria torcedor do Internacional, ficaria decepcionado. Também deixava claro o ciúme que sentia das gurias quando, já adolescentes, apareciam com namorado novo em casa.

O pai era quieto e ao mesmo tempo engraçado. Havia um capítulo só com piadas ou episódios que ele inventara para contar aos amigos ou nos encontros de família. O Caso do Geraldo, o fanha, era um dos meus preferidos. Só de lembrar o final, quando o Geraldo - um dos integrantes de um grupo de amigos de uma de minhas irmãs que o pai estava levando ao cinema - dizia que precisava voltar, pois esquecera o ingresso, e o pai dizia tudo bem, mas tem um louco atacando naquela rua escura e o Geraldo que já iniciara o caminho de retorno se virava assustado e mandava o pai para a puta que pariu a voz arranhada saindo pelo nariz tenho vontade de rir. Contando assim, resumidamente, parece não ser engraçada. Mas era. O pai costumava se engasgar no meio da história. Ficava vermelho, tossia, arregalava os olhos, eu pensava que ele não conseguiria contá-la até o fim, que iria explodir em gargalhada. Está ali, na página trinta e oito, na data de 1958, quatro anos antes de eu nascer, portanto. O episódio aconteceu na cidade de Jaguarão, onde ele prestou serviço militar exercendo a função de oficial radiotelegrafista.

Uma vez o caçula me perguntou o que fazia um radiotelegrafista. Expliquei que a profissão não existia mais, mas que hoje seria o mesmo que um especialista em internet. Ele sorriu orgulhoso.

- O oficial era bom na internet na época dele – disse ao irmão mais velho.

Era assim que se referiam ao avô: o Oficial.

Envolto nas recordações, me virei com o intuito de retornar ao sofá. Nesse instante, vi quem estava a espiar a casa lá de fora.

Estava longe de ser uma assombração.

Ramão Marques
Enviado por Ramão Marques em 06/03/2007
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