A cegueira
A mulher me olha com expressão de angústia, pronta para fazer uma revelação. Hesita, chora. As lágrimas encharcam meus cabelos. Com elas, lavo o rosto, sacio a sede. As gotas caem mornas, cristalinas. A mulher soluça. Eu espero. Ela suspira fundo e o ar que brota desse gesto refresca meu rosto, joga para trás meus cabelos. Sempre é assim: faz rodeios, às vezes gagueja, adia a conversa que diz quer ter comigo.
Enquanto ela não se decide, observo ao redor.
Gosto de ficar nesta casa. O piso é macio e delicado. É preciso caminhar devagar, na ponta dos pés, para não arranhá-lo. As paredes são gelatinosas. Encosto nelas e é como se recebesse uma massagem relaxante nas costas, no pescoço, nos braços, nas pernas. Com o tato, procuro descobrir os materiais que foram utilizados. Desisto. Meus conhecimentos sobre construção civil são pífios. À direita, uma escada leva ao sótão. O acesso ao lugar me é proibido. Já tentei subir, a mulher não deixou. Argumenta que é perigoso. Respondo que sei me cuidar. Não a convenço. A chave fica pendurada próxima à porta. Ela sabe que não ouso desobedecê-la.
Sempre gostei desta casa, embora não lembre de quando nem como vim parar aqui. Já havia morado em outros lugares, mas tive de abandoná-los por falta de dinheiro para o aluguel. Quando isso acontecia, ficava revoltado. Agora agradeço as inúmeras vezes em que fui despejado. Durante semanas, morei na rua. Primeiro sob uma ponte. Depois, no corredor de um prédio abandonado. Uma gangue de moleques descobriu o lugar e tive duas alternativas: sair dali ou enfrentá-la. Optei pela primeira. Vaguei dias e dias. Só o que lembro é de que adormeci de cansaço, acho que em um viaduto, e quando despertei, estava nesta casa, onde moro até hoje.
Eu me aproximo, passo a mão pelo seu rosto, como a incentivá-la a falar. A expressão de angústia se acentua. Enquanto espero, reflito. Gosto de ficar nesta casa. Nunca ligo a luz e, agora percebo, não há sequer interruptores ou lâmpadas. Há uma claridade estranha, não é artificial, não sei de onde vem. Não é de fora, isso tenho certeza. A janela é pequena, não permite a passagem dos raios solares. Às vezes ouço ruídos, parecem ser o som de um instrumento. É sutil. Será ele o responsável por manter esse sistema de iluminação sempre ligado?
A luz não é empecilho para eu dormir. Quando tenho sono, deito sobre um colchão d’água. A casa deve ter um mecanismo que transforma a claridade em penumbra quando adormeço. Gosto da casa e da comodidade que ela me proporciona. Não pago aluguel para ficar aqui. Ela é aconchegante como nenhuma outra. Tem essa luz, parece aura, tem esse som, semelhante a um sussurro.
A mulher me olha com expressão de angústia, como se estivesse pronta para fazer uma revelação. Em vez de falar, chora. Eu me aproximo, acaricio-lhe o rosto, espero. A mulher se acalma. E com voz pausada, me conta como vim parar nesta casa.