A mulher que mora na retina
Ela mora no meu olho, como se fosse uma lágrima. Não é sonho, imaginação ou loucura. É real. Vejo-a a toda hora, conheço todos os seus hábitos: quando se dirige à academia, ao encontro com as amigas, ao trabalho. Acompanho todos os seus movimentos: quanto tira a roupa, entra na banheira, enxuga o corpo com a toalha, se deita. Ela não sabe, e é melhor assim. Se descobrir, pode não gostar, ficar zangada. Ou ainda perder a espontaneidade, esconder-se, alterar a rotina para tentar me enganar. Ou pior: exigir que tudo volte a ser como antes.
O que mais temo é que ela fuja. Uma noite, acordei assustado, após um pesadelo em que ela havia escapado. Não sei se escapar é a palavra mais adequada, porque ela não é minha prisioneira. Apenas mora no meu olho. Eu tomo conta dela, sou uma espécie de anjo da guarda, ou guarda-costas. Quando aceitei o emprego, pensei que seria mais um trabalho comum, desses que se dão a candidatos sem muita qualificação. No começo, parecia simples. Eu, um cara vivido com dizem por aí, zelando pela segurança de uma mulher jovem, de família rica, sem que ela soubesse.
O pai dela é um cara carrancudo. Alto, grisalho, e apesar da idade, com a pele lisa, parece plástico. Já foi ameaçado, mas sabe cuidar-se sem ajuda de ninguém. Anda armado, aprendeu artes marciais. O problema era a filha. Não teme andar pelas ruas sem acompanhante, faz questão até de sair sozinha. É corajosa e bonita, como o pai. Para ela, era necessária uma estratégia diferente. Era preciso fazê-la imaginar que nada mudaria: a rotina da casa, o trabalho, o encontro com amigos, os passeios. A idéia do olho surgiu por acaso. O pai dela sugeriu. Fiquei temeroso. O cheque que ele colocou na minha mão como parte do pagamento removeu qualquer dúvida.
Foi preciso uma cirurgia. O médico explicou que a cavidade do olho seria adaptada para se parecer com o cotidiano da mulher. Ela estava no quarto, dormindo, quando foi sedada e levada para a sala de cirurgia, junto comigo. Não percebeu nada. A última imagem que lembro antes de ser anestesiado é a dela sobre a maca, ao meu lado. Estava linda. Minha impressão é de que estava nua. Tive vontade de levantar e beijá-la. Fiquei semanas no hospital, com uma venda preta me impedindo de enxergar.
O período de adaptação foi difícil. No começo, bolinhas multicoloridas, parecendo o arco-íris, eram tudo o que via. Com o passar do tempo, fui distinguindo silhuetas e, por fim, passei a perceber objetos e identificar pessoas. Não como antes. Agora, também vejo a mulher. São imagens superpostas. Demorei a me acostumar com a situação. Às vezes, sussurrava, ao invés de falar, com receio de atrapalhá-la.
- Ela não pode ouvi-lo – explicou o médico.
Isso me tranqüilizou. Em compensação, não posso tocá-la. É a única maneira de ela perceber a minha presença. Isso é uma pena, embora eu diga para mim mesmo que sou um profissional, este é um serviço como outro qualquer, não devo ter envolvimentos emocionais com clientes. Depois que aceitei este trabalho, não sinto a vista cansada, abandonei os óculos e as lentes de contato.
- Efeito da cirurgia – disse o médico.
Ela passeia pelo cristalino, a íris, e é como se fosse irrigando todas as pequenas veias do meu olho. Pisa delicado sobre as glândulas lacrimais. Às vezes, tenho a impressão que as pupilas estão dilatadas e caminho em meio a um nevoeiro. É quando ela está triste. Esfrego o olho devagar para que minhas mãos não encostem nela e, se recobra a alegria, adormeço. Tem dias que me sinto um canalha por esta relação. Quando isso acontece, tenho vontade de tocá-la e contar a verdade. Uma guerra íntima se apodera da minha consciência. Pondero sobre os prós e os contras: onde iria encontrar um outro emprego com este salário na minha idade? Mas, e ela, é justo que viva desse jeito? Procuro argumentos consistentes para tomar uma decisão. Ela não perde nada em não saber a verdade. Antes, se saísse, corria o risco de ser seqüestrada, assaltada, levar um tiro. Afinal, gosta de andar só e voltar tarde da noite para casa. Agora, pode andar livre por aí: eu a protejo.
Ela é bonita. Nunca estive próximo de uma mulher tão bonita assim. Se contar a verdade, posso perdê-la para sempre. Tive muito trabalho em capturá-la, me submeti a uma cirurgia delicada. Não posso colocar tudo a perder.
Sou um privilegiado. Gostaria de contar para os outros sobre a existência da minha inquilina. Sentiriam inveja de mim, diriam que estou ficando louco, que meu caso é para psiquiatra. Por isso, fico calado, guardo segredo. Não falarei para ninguém sobre ela, nem a tocarei, para que não descubra sobre a minha existência. Limito-me a cuidá-la, que para isso é que fui contratado. Agora mesmo, se prepara para sair. Eu me arrumo para segui-la. Está mais linda do que nunca. Se me ouvisse, diria isso a ela, depois seguraria seu braço, giraria seu corpo ao encontro do meu e a beijaria na boca.