O SONHO, NUM SABONETE
      
                                                             ..1..

  Austreclynio estava ali, parado, num carro cujo modelo não mais tinha certeza  se fora fabricado na década de '40 ou '50, tantos foram na sua vida os Studebakers, Oldsmobiles, Cadillacs, Packards... Aliás, o carro é que estava parado; ele, não; pois seus olhos deslumbrados "corriam" sobre as costuras dos assentos forrados de couro e sobre o painel de madeira envernizada onde (prometendo 150 milhas/hora) o velocímetro lembrava "...tela de cinemascope!", e o porta-luvas espaçoso "...gaveta de chefe-de-serviço!"
  ...E o relógio redondo, aro cromo-prateado? ..."lindo!" 
  ...E o rádio? "...que rádio! Ondas médias, curtas e longas..." 
  Tudo aquilo lhe despertava comparações e entusiasmo. 
  Pequena sensação nervosa, leve ansiedade, aparentemente sem causa, fazia-o fechar e abrir, fechar e abrir, de novo fechar e abrir as mãos agarradas ao volante; e novamente, seguidamente, fechar e abrir, fechar e abrir as mãos. A existir algum motivo para tantos pinotezinhos do coração (qual saltos dum potro solto na pradaria), este seria, talvez, o fato de estar dentro daquele carro (...- Mas, por quê? O carro é meu!) 
  Sim, o carro era dele.
  ...(- Relaxe! - sussurrou-lhe a própria voz.)
  Soltou uma das mãos, para acender a luzinha do teto. Tique nervoso fez com que a acendesse e apagasse diversas vezes. Voltando sua atenção ao painel, tocou-o com as pontas dos dedos, "apalpando" todos aqueles elementos (velocímetro, porta-luvas, relógio), como a certificar-se de que tudo era real, não um sonho. 
  Ligou o rádio. (O dial dos rádios sempre o fascinou, pelos diversos formatos e pela rapidez com que os ponteiros iam à busca do que pretendia.) Colocou-o em ondas curtas, para "aproximar-se" de pessoas do outro lado do mundo, e "vê-las" — "...pessoas de narizes assim e orelhas assado",  tal como as imaginava, quando ainda criança. Sintonizou estações, mal, bem, uma após outra: lá estavam todas aquelas personagens expressando-se em inglês, sueco, russo, francês!... E ele, de cá, como se entendendo tudo. (- Fascinante! Belo automóvel! — murmurou).
  Belo automóvel, o de Austreclynio. Porém, após relancear os olhos, de novo, por todos os cantos, e para ser honesto consigo mesmo, admitiu que o modelo talvez — ..."talvez!" — não fosse dos mais bonitos, comparado a outros de outras marcas. (- Mas é bom! É bonito! E é meu! — murmurou outra vez).
  (...)
  Ele estava ali, no carro, na avenida onde poucas pessoas circulavam, no momento calmo da tarde, horário mais espaçado entre as passadas dos trens.
  Pelo parabrisas e pelas janelas de vidro abaixadas avistava tudo à frente e aos lados: o armazém que vende de quase tudo que se precisa em casa; o boteco; as duas farmácias; as três barbearias; as três lojas de armarinhos; a garagem de bicicletas; o consultório médico, o dentário; os dois hotéis; a agência bancária; a fábrica de macarrão, a de goiabada; a loja do sapateiro; a lavanderia/tinturaria; as duas padarias; os quatro bares (um, com sorveteria); o cinema no finzinho da avenida; 
  ...as  árvores de ficus, enfileiradas; as pracinhas separadas; os bancos pros namorados; os trilhos, vagões e estações de trem; os galpões da usina de café; o coreto das retretas, dos discursos políticos; as quatro sibipirunas frondosas; o obelisco, marco da primeira exposição de gados; o busto, em bronze, do Interventor do Estado, que emancipou o município...
  Ajustou os retrovisores interno e externo, cujos espelhos tinham limites e, por isso, virou um pouco de lado o corpo, e torceu o pescoço, para olhar o que estava à ré — ato desnecessário, pois conhecia de cor as demais coisas existentes na avenida, não sendo por conta da limitação dos espelhos o não ter visto os dois únicos automóveis de aluguel  que deveriam estar atrás do seu. O "ponto de taxi" estava vazio; com certeza os veículos sairam em viagens pelas estradas poeirentas.   
  (...)
  Sentia-se incomodado, um pouco; o peito lhe doía, um pouco, devido às lembranças. Seus olhos começaram a marejar. Reajustou o espelho interno para olhar-se nele — e na maneira peculiar aos espelhos (maneira fria, chapada, lisa, entretanto, fiel), Austreclynio deparou-se com uma testa enrugada, uma cabeleira totalmente branca, uns olhos úmidos que imediatamente se fecharam, ante a realidade. Remexeu-se, inquieto. (- Oh, meu Deus, quanto tempo! Já não tenho sequer um fio de cabelo por encanecer!...)
  Novas imagens do passado afloraram: o menino que fora, a infância, a família, os amigos; pessoas antigas do lugar, pessoas simples, que então andavam pelas ruas de trânsito quase nenhum, pés calçados em tamancos, em botinas ruças, em sapatos precisando de meia sola; gente em vestes domingueiras de missas e cultos, que fazia piquenique, que se divertia no cinema, nos jogos de futebol; que comprava fiado e tinha suas compras anotadas no caderninho do credor para serem pagas ao final do mês; mocinhas na plataforma da estação, à chegada do trem da tarde (quem sabe, nele estariam viajando mocinhos que um dia voltariam para arrebatar de vez seus corações!?)...
  Suspirou — um suspiro profundo que lhe trouxe alívio e o acalmou. Olhando agora através do parabrisas, sua atenção prendeu-se a uma das lojas de armarinhos; e seu rosto relaxou-se em tênue ar de sorriso. (" - Puxa! Essa loja! Estava esquecendo dela!"). Livre da sensação primeira, livre do resquício de tensão que o amofinava, um riso solto desanuviou-lhe os olhos. (- Puxa! E as rifas?!...)
  (...) 
   As rifas dos Packards e as lojas que vendiam sabonetes: havia toda uma história atrás delas.                
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  Segundo quinquênio dos anos '40 e primórdios dos '50 — época em que o menino miúdo já conhecia o salário curto do pai, suficiente apenas para o sustento da família. Mas a criança sonhava...
  (...) 
  Durante três anos seguidos, no mês de dezembro, apareceram uns homens vendendo rifas de automóvel, sorte restrita a um número de milhar, com resultado divulgado pela Loteria Federal.
  Coisa honesta, jamais houve dúvida e ninguém se sentiu lesado.
  Cada ano, um Packard, novinho, foi apresentado ao público. Estacionado no meio da avenida, entre as duas pistas e na parte mais central, ali permanecia e era visto e revisto por quem se interessasse. 
  Os pais que podiam, compraram bilhetes.
  Os filhos, mais que os pais, ficaram esperando ganhar o automóvel bonito.
  Três anos se passaram. Três oportunidades, e nenhum cidadão local foi premiado .
  Nada mais a fazer.
   (...)
  A ausência daqueles homens nos anos seguintes talvez não significasse mais nada para um adulto qualquer que haja comprado bilhete, muito embora ao guardá-lo (na gavetinha da cômoda, colocado bem à vista, aberto, em cima dos pentes, das cartas recebidas, dos santinhos de novena, da caixa de fósforos e dos tocos de velas para o caso de faltar luz durante a madrugada) o milhar impresso naquele pedaço de papel lhe desse a quase certeza de que ganharia o carro — até que o resultado do sorteio lhe trouxesse o desaponto de não ser o felizardo. (- Melhor assim! ​​​​— diria então. - Eu não poderia mantê-lo com o meu salário.)   
  Para um menino sonhador, cujo pai não mais comprava rifas, restava-lhe admirar de perto o conversível cor de pérola e pneus banda branca pertencente ao presidente da Empresa de Força e Luz, que sempre o estacionava defronte ao Banco da Cidade ou à Fábrica de Tecidos, nas visitas que costumeiramente fazia ao concunhado, presidente daqueles estabelecimentos.
  Sempre esperançoso, também as revistas Seleções do Reader's Digest alimentavam seus sonhos. Nelas, encantava-se com as vistosas propagandas dos Nashs, Mercurys, Pontiacs e outros, um misto de desenhos coloridos com fotografias também coloridas, mostrando "cenas de cinema", ora à entrada de clubes e hotéis luxuosos (gentis homens abrindo as portas dos veículos a senhoras e senhorinhas encantadoras), ora à beira mar, praias orladas de coqueiros (moços e moças estampando lindos sorrisos de felicidade).  
  E assim foi, durante algum tempo...
  ...Até surgirem novidades
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  Eram três lojas de armarinhos e todas vendiam sabonetes: o Lever, o Lifebuoy, o Vale Quanto Pesa (gorducho simpático), o Eucalol (das estampas coloridas), Palmolive, Gessy, Dorly, Cinta Azul, e outros.
  As grandemente propagadas prenhezes de duas marcas fizeram rebrotar esperanças abaladas ou mesmo perdidas.
  Nove entre dez stars de Hollywood usavam o Lever, fazendo-o, imediatamente, o preferido entre os "farinha do mesmo saco" que disputavam o mercado. A quem tivesse o saudável hábito do banho corporal diário ele prometia estrelas de ouro dezoito quilates (!) encontráveis em seu ventre. 
  O menino imaginava-as grandes, pesadonas, do tamanho daquelas usadas pelos xerifes nos filmes de faroeste, impossível de serem entortadas nos dentes, como era feito para saber se o dólar era bom. Porém, logo ficou claro não serem mais que pendentifs, berloques leves, servindo apenas para compor cordões magros (mas, de qualquer forma, um ganho para quem as encontrasse).
  Logo veio o Lifebuoy, prometendo um automóvel.
  - Um automóvel? 
  - Sim, um automóvel! 
  - Fique, então, o Lever com as "stars" de Hollywood e os berloques! 
 A partir de então, após o vespertino banho, muita gente sairia às ruas exalando cheirinho de limpeza proporcionado pelo Lifebuoy, garantia de ausência de cê-cê nos sovacos.
  Quem comprava Lifebuoy, acendia a lâmpada mais forte da casa, colocava o sabonete contra a luz e procurava, na opacidade das suas carnes, algum sinal de gravidez. Se a coisa não se evidenciasse nesse prévio e singular exame, mesmo assim, frustrado, o fulano mantinha pensamento otimista:
  - Hei de encontrar!
  A sorte, em forma de uma chave de ignição, poderia chegar a qualquer momento; e quando chegasse, sairia do peito do novo Arquimedes o retumbante
  - Heureka!
  ... — não importando estar, o personagem, numa banheira, ou num chuveiro, ou banho de cuia, ou, simplesmente, pelado, pesquisando contra a luz da lâmpada, antes de enfrentar a água (tantas vezes) fria.
  Enquanto aguardava a grande data, Austreclynio jogava boleba, futebol na rua, ia ao cinema, brincava de tirrim, pescava lambaris, bagres e rãs, pegava tanajuras e besouros. Era tanta coisa para fazer e ver, que a ociosidade, assim tão dividida em pedaços, desaparecia de sua vida, e ele arranjava tempo até para ir à escola e fazer os deveres de casa.
  (...)
  A sorte não chegava, as chuvas caiam, as tropas de burros, os carros de bois e os sofredores caminhões de cargas iam e vinham.
  (...)
  A sorte não chegava, as chuvas paravam, o sol aparecia, a noite o encobria, o dia amanhecia, os burros, os bois e os caminhões iam e vinham... 
  Até que chegou, de surpresa, a decepção!
  A notícia fez as esperanças desaparecerem e cairem as vendas do Lifebuoy e do Lever.
  Depois de um tempo quase esquecido, por causa de tantas vantagens oferecidas pelos campeões, a criançada voltou a se interessar pelo Eucalol. Suas caixas traziam estampas coloridas, colecionáveis; e o sabonete não estava sujeito a certos procedimentos... escusos! — como, especialmente, no caso do Lifebuoy, coisas que derrubaram a zero a busca pelo bambambã.
  Deste modo, voltou-se à serenidade do escambo de estampas entre a garotada.
 
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  Ele estava num carro cujo modelo nem mais se lembrava de que ano era, tantos foram na sua vida os Studebakers, Oldsmobiles, Cadillacs, Packards. Estava, na verdade, dormindo a sono solto no sofá da sala de visitas, quando acordou assustado pelos gritos e pelos solavancos em seu braço.
  - Vô!... Vô!... Vôo, acorda, vô! 'Tá dormino di boca aberta, vô! 'Tá sonhano? 'Tá cum cara de riso! Tamém, ficô bebeno vinho!... Já viu o presente qui Papai Noel troce pro sinhô? perguntou o menorzinho.
  Os netinhos fizeram-no levantar-se para acompanhá-los até a varanda da casa. Abriram a porta e gritaram:
  - Tchammm! 
  Diante deles, um magnífico e reluzente Ford Thunderbird '56, coupé, vermelho; pneus banda branca! Com as portas abertas! Era só entrar, sentar, ligar, e acelerar!
  Austreclynio sentiu o coração saltar como potro solto na pradaria, repetindo-se a mesma coisa, a mesma sensação que o deixara meio banzeiro no sonho em que revivera seu passado de criança.
  - Era cum esse qui o sinhô 'tava sonhano di boca aberta, vô?
  - Não; era com outro;  não tão bonito, mas também muito bacana. 
  Por  breve instante ficou em silêncio, observando o carro; e rematou:
  - O problema é que este só tem lugar para o "chauffeur" e para o carona. Como vou levar vocês dois? Temos que dar um jeito nisto. Cadê a chave?
  Os dois sairam correndo para buscá-la, logo voltando.
  - Enganamos o bobo, na casca do ovo! - gritou o maior.
  - Num é assim, bobão! — corrigiu o menor. É assim: enganamo o vô, na caca do ovô! O carro é nosso, vô, num é seu, não!
  Acionou o controle e a miniatura 1:18 saiu correndo velozmente pela sala.
  Pois é! Diante deles, rodando em disparada, a réplica do sonho da criança (que fora) Austreclynio; sonho desfeito por um lojista da cidadezinha...
  ... — um homem que vendia agulhas para costura;
  ...que também vendia sabonetes;
  ...que, não podendo desembrulhá-los, crivava-os com as agulhas, até atravessá-los;
  ...e que, não tendo como disfarçar os seus atos, deixou neles os rastros acusadores da sua esperteza.  
 
                                                             ---oo)(o)(oo---  
Dez.06.2012