Vazio

Seu rosto será a última lembrança que eu quero ter antes de partir. As malas estão prontas, eu estou de viagem. E enquanto eu esvazio meus armários, deixo a nossa música tocando repetidamente, como um hino de despedida, uma canção de adeus.

Tudo o que nós vivemos dá para escrever um livro, até um pouco mais. Penso em tudo o que passamos juntos e deixo que as memórias façam parte de um tipo de ritual. Não há nada que se desculpar, só devemos nos abraçar e seguir em frente, como é esperado.

A janela da sala vai ficar aberta, para que possa ventilar melhor. Deixei a cozinha organizada... Lembro do nosso primeiro jantar aqui... Você parecia tão dona de si, tão segura cortando cebolas e verificando tudo. Me dava ordens, dizia que queria tudo perfeito para o nosso jantar de inauguração no nosso novo lar. Eu te olhava abobalhado, seus gestos tão delicados, como tornava mágico mexer na panela, colocar um pouco de molho nas mãos e experimentar o tempero... Simplesmente me fascinava seu cabelo preso em coque e seu rosto sem maquiagem, vestida com uma camisa minha, caminhando concentrada, cuidando de cada detalhe... Era tão delicada, tão meiga em seus gestos que, por muitas vezes, me surpreendia a te admirar, como se fosse uma obra de arte exposta na mais nobres galerias.

Às vezes reclamava de eu ser muito quieto e parecer não te dar nenhuma atenção, mas confesso que sua voz me emudecia e sua inteligência em sempre ter uma resposta, sempre saber o que dizer, sempre ter um assunto ou um ponto de vista incrível sobre qualquer coisa, usar seus argumentos de forma clara e no momento certo me dava tanto orgulho, que eu preferia me calar do que estragar o momento com qualquer bobagem que poderia sair da minha boca.

Parecia tão absoluta quando estava nervosa, tão encantadora... Tinha uma maneira de cerrar os lábios e de se fazer tão brava, mas seus olhos tinha ainda aquela bondade e seu rosto de bebê me desconcertava... Às vezes chorava e fazia me sentir tão culpado, mesmo quando eu não tinha nada a ver com a história.

Agora estou aqui, sentado neste apartamento vazio, em meio a malas e caixas, fumando meu cigarro e imaginando onde eu errei, o que mais poderia ter feito para que essa história que escrevo hoje fosse diferente, para que as palavras que estão saindo de mim fossem outras, mas a verdade é que nunca tive a coragem de assumir para mim mesmo as falhas de que tanto se queixava.

Nunca disse o quanto te amava e o quanto era importante para mim, o quanto a sua vida fez diferença na minha, nem mesmo o quanto me orgulho eu tive, e ainda tenho, de você, quantas saudades ficaram no teu lugar, preenchendo estes espaços.

Sinto que não foi só por distração que tudo chegou até aqui: muitas vezes também fui negligente, sempre te julguei tão inteligente, tão forte, tão suficiente, tão decidida que acabei por me omitir e não te ajudei, não estive presente em momentos que acabaram sendo tão imprescindíveis e, portanto, determinantes.

Não demonstrei meus sentimentos por pensar que você já os conhecia, já os sabia, não achava necessário ficar relembrando a cada instante o que passava dentro de mim... Como se você tivesse a obrigação de adivinhar! Fui muito estúpido e só me dei conta disso quando já era tarde, quando você esvaziou os armários, arrumou suas malas, quando me beijou chorando e saiu batendo a porta, fazendo um barulho de quebrado, que só depois entendi que era um som que vinha de dentro de mim, e não da porta.

Não quero entender a minha culpa, não quero ter que ir, mas o apartamento está vazio e nada faz muito sentido aqui sem você.

Agora entendo, agora tenho as palavras certas para te dizer, as palavras que passei uma vida buscando... Mas o táxi já chegou e você atravessa a rua, com uma decisão na cabeça, um sorriso triste no rosto, de óculos escuros, seus sapatos vermelhos e fones nos ouvidos.

Kelli Rodrigues
Enviado por Kelli Rodrigues em 02/12/2012
Reeditado em 09/12/2012
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