O POVO ME QUER
“Há três espécies de cérebros: uns entendem por si próprios; os outros discernem o que os primeiros entendem; e os terceiros não entendem nem por si próprios nem pelos outros; os primeiros são excelentíssimos; os segundos excelentes; e os terceiros totalmente inúteis”. (Nicolau Maquiavel).
Leonardo sempre foi carismático. Desde menino que ele se deu bem no trato social e nas relações interpessoais. Leonardo era magrinho, branquinho, e bonitinho. As moças de sua idade diziam dele: “Leonardo só tem um defeito, a bunda um pouco batida, o resto a gente aproveita”. Leonardo estudou no Comendador Saturnino, aqui, na cidade de Pampas. Fez o fundamental, se formando com muito sucesso, depois foi fazer o ensino científico em Aracaju, pois, em Pampas, não havia escolas para isso naquela época. Leonardo fez o ensino científico, e depois fez vestibular para direito. Não passou na primeira vez, fez novamente o vestibular, não passando na segunda vez. Então, Leonardo decidiu voltar a sua terra para seguir a carreira de seus antepassados. Na verdade, sua família tinha muito prestígio por essas bandas. Seu tataravô conheceu o Barão de Jeremoabo, seu avô, foi político forte na época de Getúlio Vargas, e seu pai, o famoso Zé das Galinhas, prefeito da cidade por dois mandatos.
A câmara Municipal de Pampas muito se alegrou com a candidatura de Leonardo a Prefeito da cidade. Os vereadores mais antigos se emocionaram quando viram o rapaz entrar com o terno que pertenceu a seu finado pai.
- Leonardo tá com o terno de Zé. É meu filho, quem tem nome vai longe, e você o tem.
- Mas, eu num quero que o povo vote em mim por causa de meu pai. Eu o admiro muito, mas, eu sou eu!
- Assim é que se diz macho véio!
O pessoal do “Partido dos Vencedores” se reuniu para estudar a candidatura de Leonardo. O nome “vencedores” era um tanto estranho, mas, em Pampas tem até escola com esse nome. Aqui o povo só pensa em vencer; o povo de Pampas é muito trabalhador.
- Acho que Leonardo deve esperar um pouco mais. O pessoal do brejo num vai gostar.
- Rapaz, quem tem fidelidade com o grupo acompanha o grupo. Ele num quer ver o futuro da família dele, então, obedeça à direção do partido!
- Isso mesmo Cegonha! Interrompeu Toinho do tabaco, “o vereador que sempre leva você em paz”. Todo mundo tem que se unir e formar a base para Leonardo seguir seu destino que seus pais traçaram.
- Num é bem assim, Toinho. Eu quero representar meu povo e administrar essa cidade. Ademais, para não discordar de você totalmente; acho que a política está no meu sangue. Cegonha coçou o invólucro escrotal, levou o dedo indicador às narinas e fungou um pouquinho antes de continuar:
- Vejam que muitos interesses existem nos Pampas, mas, aqui, a decisão final sempre foi de gente honesta. E o Partido dos Vencedores é um partido de gente honesta. Leonardo deve ser apoiado por todos porque ele representa a geração futura que emerge de um passado glorioso. Todos os presentes se levantaram e aplaudiram o vereador Cegonha – Aquele que não te deixa na estrada.
A cidade de Pampas tinha 15 povoados e 10 vereadores. O prefeito anterior havia se envolvido com algumas coisas erradas e estava entregando o mandato sem força para uma reeleição. Ele já havia sido vereador por dois mandatos em épocas anteriores, seu finado pai também foi vereador. Sua família tinha um latifúndio que comportava 60% de todas as terras do município; ele ainda foi presidente da Câmara e do Rotary Clube, e dizem que o mesmo tinha uma rapariga em Olindina. Em Pampas, a moralidade é muito elevada, contudo, as contradições aparecem aqui e ali.
- Meus filhos, a igreja é santa e profana. Disse o pároco Norberto. O velho repetia isso em todos os seus sermões. Em sua mente, esse paradoxo era legítimo, e legitimador da conduta geral.
- O padre disse novamente aquilo, Solange!
- Foi? Nem percebi, meu celular tinha mensagem, me desconcentrei para lê-la. Mas, a gente se criou ouvindo nosso padre dizendo isso. O que é que ele estava falando mesmo?
- Mulher, ele estava se referindo ao que o povo faz depois da devoção quando é festa na cidade. Mas, num é verdade mesmo, o povo vem falar com Deus, e depois vai para os braços do capeta e tome cerveja!
- Se fosse só cerveja! Minha filha, Pampas tá perigoso! As duas mulheres conversavam dentro do santuário no final do culto. Quando Solange levanta o olhar, Leonardo estava saindo sendo acompanhado por uma senhora idosa.
- Mulher, aquela é Dona Francisca?
- É!
- Mas, espie comadre, como está velhinha! Meu Deus! Será que ela vai ver Leonardo ser eleito?
- Num vai o que rapaz! O homem tá eleito!
As forças políticas de direita do município praticamente não tinham oposição, no entanto, o partido da oposição ganhava certa credibilidade porque o povo reclamou muito do São João do atual prefeito.
- Rapaz, o cara trabalha que só uma besta, ganha mal, come mal, vive mal, e depois, o prefeito faz um São João desses! É um cabrunco esse cara, rapaz!
- Cabrunco é pouco Cosminho! Essa porra tinha era que tomar...
- Num é Damião? Ah, se eu tivesse uma escopeta!
- Tu é de nada fio da peste! Vamos tomar umas que é melhor!
Naquele tempo, em Pampas não tinha radio. O debate político era feito no centro social, e transmitido pelo carro de som. Vinha gente de todos os lugares para espiar, ouvir e dizer alguma coisa. Nunca teve morte por isso, o povo de Pampas é da paz. Embora o povo fosse dócil, o debate foi um pouco quente. Os candidatos, como é costume do lugar, se prenderam às denúncias e, às vezes, levantavam assuntos pessoais, e quando o pessoal aparecia, as pessoas Pampenses arregalavam os olhos e abriam bem os ouvidos.
- Posso ser um homem de família humilde, meu pai ter morrido por causa de uma hemorroida estrangulada, como alegou o candidato da mesmice, Leonardo, mas, sou honesto, nem empregarei parentes na prefeitura. Disse o candidato da oposição professor Adelson Nunes do sindicado, ou como o povo costumava chamar “Delsinho do sindicato”.
- Delsinho tá dizendo que nosso partido tem pessoas na máquina pública. Vejam que barbaridade! É como o povo diz, com uma calúnia dessas, só Deus para repetir a história triste do pai – Hemorroidas nele meu Pai! Quando o populacho ouviu o “Hemorroidas nele meu Pai”, o povo entrou em delírio, a gritaria foi grande, uns atiravam os chapéus para o alto, outros cuspiam e coçavam o saco repetidamente, outros davam cavalo de pau com suas bicicletas. A galera gritava uníssona “É de Leonardo!”
Leonardo ganhou e arrastou consigo os vereadores do prefeito anterior. Agora era esperar assumir e compor seu secretariado, o primeiro, o segundo, e o terceiro escalão, sobrando vagas, entram os acordados. São os cargos da raspa do tacho. Leonardo reuniu seu pessoal, agradeceu o apoio e passou para o que interessava.
- Olha gente tive que criar duas subsecretarias para caber todo mundo. O que prometi vou cumprir. Agora vamos mostrar trabalho! Sim, Cegonha, sua filha vai ter que esperar um pouquinho porque esse negócio aí depende do pessoal de Aracaju.
- Leonardo, palavra é palavra! Você prometeu que ela ia para a secretaria de agricultura em Aracaju. Rapaz, eu preciso muito dela nesse cargo!
- Companheiro! Tenha fé, a gente vai ajeitar! A reunião terminou; todos já sabiam como seria o governo. O transporte escolar seria divido com três vereadores da base. A prefeitura faria as licitações e essas empresas ganhariam o serviço de transporte dos alunos. Em cada secretaria estavam empregados sob o regime de confiança os parentes dos vereadores e dos secretários de governo. Algumas vezes, Leonardo teve que aumentar a folha devido a mais um inimigo que virou a casaca para o lado dele. O pobre ficou tão triste que desabafou com dona Francisca, sua tia e confidente.
- Tia, num sobra dinheiro não! Tenho que empregar os aliados todos, já pensou que tradição!
- Meu filho, hoje tá melhor. Pior foi no tempo de teu pai e de teu avô. Veja, não mudou muito, mas, naquele tempo era pior.
- Tia Francisca; vou precisar de um coisa de você!
- O que meu filho? Você parece muito com sua mãe. É tão gentil.
- Os vales dos caminhões pipas é você quem vai administrar como era no tempo de pai.
- Pode deixar meu filho. Faço com muito gosto!
A seca chegou. Em Pampas de Sergipe, às vezes, a estiagem dura sete meses e os políticos sendo sabedores disso não preparam a população para enfrentar racionalmente e com dignidade a falta do líquido precioso. A solução era pedir a Francisca um caminhão d’água, dessa forma, o povo estava sempre devendo favor. A água e a saúde eram as forças que formavam o curral de Pampas. Durante os períodos de estiagem, mais pessoas dos povoados se filiavam ao partido de dona Francisca. A mulher, de muita sabedoria, virou uma santa, e seu carisma maior do que o de seu sobrinho, os dois eram imbatíveis.
A seca continuou castigando o sertão de Pampas. Uma menina foi picada por uma cobra e faleceu no posto de saúde por falta de um carro para leva-la a Aracaju. A emissora de radio da cidade vizinha noticiou o fato e cobrou de Leonardo medidas para sanar a situação do hospital.
- A situação nos Pampas é de urgência. Os cofres públicos devido à estiagem não têm muitos recursos. Vocês sabem a seca castiga, o gado fica fraco, e os negócios também. Disse o prefeito.
- Mas, todo ano não há estiagem nessa região? Por que vocês não fazem um planejamento para tanta gente não sofrer assim, afinal, quem vive em total dependência da natureza são os animais, os seres humanos pensam, fazem. Leonardo não gostou do repórter da radio.
- Moço, falar é fácil, difícil é fazer! E o amigo pensa que é o dono do mundo, é? Que tem o rei na barriga? Só porque tá falando aí? Leonardo tinha a Câmara toda nas mãos. A estiagem uniu os políticos, eles diziam que era “um pacto pela vida”. Quando a seca foi embora, um rapaz que sofria alucinações devido a uma pancada que levara na cabeça viu Pampas cheia de carros e gente comprando e gastando muito. Mas, é fato; o povo de Pampas, depois da seca, pareceu mais rico. Os comerciantes e políticos se queixavam sempre, mas, a prosperidade era grande. Na grande maioria foram pessoas da classe média para cima que ganharam com a seca: O dono do carro para transporte, o fazendeiro rico que cedeu pasto e ficou com o monopólio do gado; e aí e a coisa vai. Outra coisa que se podia ver era a quantidade de pessoas que venderam suas roças a preço de banana e vieram para Pampas, com isso a assistência social foi dobrada. Dona Francisca, também, tomava conta das cestas básicas.
- Solange, Graças a Deus que Leonardo convidou Francisca para trabalhar com ele, mulher! Ela atende a gente com tanto carinho! Dizem até que ela chorou com a morte da menina. Ela visitou a família e prometeu seis carros pipas para o povoado.
- É mulher, Francisca nasceu para servir ao pobre.
Um rapaz alto, de cabelos loiros e de olhos muito castanhos, que trajava um terno de linho marrom claro, que combinava com seu sinto e seu sapado de mesma cor, entrou no fórum da comarca de Pampas. O rapaz procurava o Promotor; em suas mãos havia documentos que seriam entregues ao Ministério Público.
- Boa tarde vossa Excelência, meu nome é Derneval, professor Derneval! Derneval nas horas vagas criava passarinhos, mas, a maior parte de seu tempo era dedicada à educação. O professor fez uma investigação e depois decidiu trazer o resultado ao Ministério Público.
- Boa tarde! Respondeu o Senhor Promotor de Justiça, Dr. Matias Fontes. Matias não era natural de Pampas. O homem veio de Aracaju fazer justiça no sertão. Ele era um homem íntegro, praticamente incorruptível. Sempre usava um terno verde abacate ou alternava com um velho terno cinza; ele gostava de cinto e sapato preto. O homem também gostava de sua arma próxima a seu peito esquerdo. Ele a guardava numa cartucheira de peito, tipo 007.
- Bem, acompanhei as ações políticas durante toda a estiagem e acompanhei o desenvolvimento econômico de algumas pessoas que estavam ligadas a máquina, e percebi que essas pessoas têm renda incompatível com o padrão de vida que ostentam. Derneval terminou sua fala e entregou os documentos ao agente da lei. O promotor ficou admirado com a denúncia respaldada e tratou de investigar.
Sete foram os meses de sigilo de justiça. Dr. Matias tinha provas para caçar o prefeito e 7 vereadores de sua bancada como também prender parentes e agregados de vossa excelência, contudo, nada escapa ao olhar de um bom político, o próprio povo o defende, ou o avisa. Todos querem ficar perto do poder.
- Leonardo, Clementina do fórum disse que tão investigando você? E parece que a coisa é séria!
- Calma Sisleide! Eu já sei o que é! Isso num dá em nada! Que ver? Espere!
Leonardo ligou para Brasília. O rapaz queria falar com um senhor muito amigo de seu finado pai. O homem era Senador. Depois ele ligou para seus amigos em Aracaju e externou sua preocupação com a base aliada que serviria para a reeleição do Governador. “Precisamos garantir a reeleição do homem porque nós não podemos ficar sem o apoio do Presidente”. Os políticos de Brasília e de Aracaju quando souberam ficaram preocupados e agradeceram a Leonardo e a dona Francisca por pensarem rápido. Pouco tempo depois a mídia noticia o desfalque em Pampas.
“Prefeito faz farra em Pampas”. Manchete do Jornal 9 horas. “Prefeito emprega até a rapariga do vereador”. Manchete do jornal Domingo Santo da Igreja Internacional do Bem de Cristo. A zoada durou uma semana, depois se acalmou. O promotor Matias foi transferido para outra Comarca deixando a bomba para um colega que nem tinha conhecimento do processo que foi misteriosamente para o fim da fila formada por centenas de processos. Leonardo foi reeleito a prefeito de Pampas. A seca continuou castigando o município, os carros pipas passeavam para lá e para cá. Dona Francisca sempre na calçada quando o sol esfriava. O povo que passava lhe agradecia as bênçãos. Matias nunca soube o motivo de sua remoção – tinha desconfianças, afinal, ele conhecia bem a história do Brasil.
- Sinhô! Sim Sinhô! Fale que nego escuta!
- Meu véio, e vai continuar assim? O velho ajeitou o cachimbo no canto da boca e disse soltando fumaça:
- Num libertaram os nego? Num foi? Tonce vão libertar vosmercês.
- Quando meu véio?
- Sinhôzinho pergunta muitxo. Mas, nego véio gosta de vosmercê. Tudo nesse mundo um dia muda. Nesse causo, a mudança é só quando a gente pobe entender o que lê e o que vê; aí o povo vai sabê quem é o dono dessa terra mermo. Se num é de quem trabaia nela! Num foi assim que Zambi deixô? ...