A menina dos olhos de ouro

Respirou fundo, mais por alívio de não ter em cima de seu corpo franzino e delicado aquele homem gordo que cheirava a óleo e cigarro, que por prazer. Há muito não sabia o que era ser amada, seus dias eram sempre iguais, vazios e salpicados com sordidez e sofreres que flagelavam seu âmago. Às vezes gostava de se entregar a desconhecidos, mas na maioria delas domava seu asco e apenas fingia. Érika era a mais famosa, e requisitada das meninas, talvez por seus lábios suaves como veludo, ou por sua pele macia feito cetim, ou ainda por seus grandes olhos amarelos capazes de fazer um homem arder em delírio, apenas por penetrar naquela vastidão luminosa dos pequenos globos que guardavam toda fantasia.

Lembrava-se saudosa da menina doce e angelical que há tempos conhecera, e a cada dia que passa se tornava mais distante, Beatriz era completamente o oposto da Érika, essa era lasciva e fingida, enquanto a primeira trazia consigo uma personalidade doce e sonhadora. Amava a todos, adorava sorrir e se deliciava com os pormenores da vida. Quando Érika apareceu, Beatriz estava passando por situações complicadas, perdera seu pai e sua mãe em um tiroteio entre a polícia e traficantes de drogas, o casal desenvolvia atividades com crianças na comunidade pobre em que moravam, certa tarde uma viatura pegaria o arrego do tráfico, para que este continuasse suas atividades, mas a quantia entregue pelos marginais, era inferior ao acerto com os homens da leis. Esses insatisfeitos decidiram oprimir a atividade, e uma intensa troca de tiros começou, todos corriam em meio a estampidos e zumbidos dos projéteis, crianças gritavam e choravam. O pai de Beatriz foi o primeiro a cair no chão, liberando de seu ventre uma enorme torrente de sangue e de seus olhos um intenso brilho que demonstrava saudades da vida. Sônia sua mãe, ao perceber que o marido caíra ao chão, jogou-se por cima dele aos prantos, quando repentinamente sentiu algo dilacerando e perfurando seu dorso, a dor era insuportável, mas logo não sentiria mais nada.

Beatriz estava sozinha num mundo que nunca fizera parte, após isso foi morar com os tios no outro lado da cidade, ficou com eles por um ano.

Quando chegara à casa, fora bem recebida por ambos, que se esforçavam para satisfazer todas as suas vontades, e acalentar suas dores. Eram os únicos parentes que tinha conhecimento, porém não os via desde menina, contava a época dezessete anos, e já se via que há muito deixara as coisas da infância de lado, para se tornar uma linda e doce mulher. Nos primeiros meses apesar do enorme pesar que trazia no peito, tudo estava bem, já distribuía grandes sorrisos, e inundava a vida de todos com sua luz. Até que numa noite foi surpreendida pelo toque de grandes e ásperas mãos sobre sua pele, as mãos tateavam sua coxa em direção ascendente a ponto de chegar a seu púbis, sobressaltada deu um pulo e se acomodou como pode para encarar os grandes olhos amarelos idênticos aos seus que a olhavam no escuro, reconheceu de pronto a face de seu tio. O homem era pesado feito um elefante e bufava feito um animal raivoso, estava sobre a menina assustada que o olhava. Por mais que tentasse Beatriz não conseguia se libertar daquele homem, que rasgava sua roupa, e sugava com esforço o sua carne doce. “SOCORRO, SOCORRO!” gritava a jovem para a casa vazia e escura. “Pode gritar o quanto puder, mas ninguém irá escutar!” respondeu a voz da besta que invadia seu corpo com violência. Na casa estavam apenas os dois, Carmem saíra para participar de uma vigília na congregação evangélica a qual fazia parte. Pedro, se deliciou a noite inteira com a carne jovem e tesa de Beatriz, que se desfazia em lágrimas e soluços.

Após o fim do seu martírio, quis morrer, matar e ser engolida pela terra, mas nada disso aconteceu, sentiu nojo, raiva e muitos outros sentimentos que não soube definir, tentou fugir da casa, mas se deparou com a porta de seu quarto trancada, procurou algo que pudesse ferir a si mesmo, mas nada encontrou, restou apenas se entregar ao sentimentos mais obscuros que a consumiam. Ficou ali encolhida em um canto escuro do pequeno quarto, tentando desprender-se de sua própria mente. Na manhã seguinte, logo após os primeiros feixes de luz invadirem sua janela e projetar as sombras das grades no chão, ouviu a porta ser aberta, sentiu um desespero sem proporções tomar conta de si. Quando viu a silhueta de sua tia, acalmou-se por ver que a besta não retornara, com ela. Sem pensar duas vezes contou à mulher o que acontecera, Carmem a encarou com enorme desdém, depois sorriu e jogou em cima da menina um pedaço de pão tão duro que pareceu-lhe que uma pedra a atingira. Depois foi acometida pelo estrondoso riso da mulher que lhe olhava parada na porta. “Alimente-se, para que fique forte mais tarde Pedro lhe fará uma visita!” Beatriz não compreendeu bem o sentido daquelas palavras, mas foi tomada novamente pelos sentimentos da noite anterior.

A visita se repetiu, e novamente Beatriz fora submetida à violências e abusos, na noite seguinte, vieram os dois, Carmem e Pedro, e a chuparam, bateram, surraram, penetraram todos os seus orifícios, de seus olhos brotavam deleite ante o sofrimento da menina. Ela foi amassada, arranhada e espancada, todas as noites, por vezes também nas tardes durante três meses. Já não comia, sorria ou sonhava, já não existia, nem entendia o motivo de todo aquele sofrimento. Já não tinha forças pra resistir às perversões. Numa certa tarde viu pela janela Érika passar em frente a casa, sabia que ninguém estava na residência além dela, e decidiu gritar a moça. Esta ao ouvir a voz de Beatriz, tratou de adentrar o quintal da casa, e seguir até a janela. As duas se entreolharam por alguns minutos, e não foram necessárias palavras para saber o que se passava, quando de repente a porta atrás de Beatriz foi aberta. Desesperada Beatriz olha em direção à porta, e vê Carmem que a questionava sobre seus gritos, tirou os olhos da tia e voltou-os novamente para a janela, que agora estava sem ninguém.

Irrompeu com velocidade em direção a porta, jogando seu corpo sobre o da mulher que a encarava, as duas caíram pesadamente sobre o chão. Beatriz se levantou rapidamente, e desferiu um chute que acertou as têmporas de Carmem, que desmaiou de súbito. Aproveitando a inconsciência da tia, a menina rumou, até a porta de saída da casa, que encontrava-se aberta. Saiu sem ao menos olhar pra trás, viu que Érika a esperava em frente ao portão, na calçada olhando a jovem que se aproximava, Beatriz não percebeu que as pessoas transpassavam Érika, como se essa fosse constituída por uma matéria etérea. Érika segurou sua mão e as duas foram embora, andaram por muito tempo, tanto que não sabiam mais dizer em que dia ou ano estavam, só pararam quando chegaram a um lugar totalmente desconhecido, e tiveram certeza de que não poderiam ser alcançadas por ninguém. Pararam um pouco para descansar em frente a uma praia, e ali ficaram sem dizer nada, apenas olhando o mar. Os quatro pares de olhos amarelos ficaram a divisar o gigante azul que irrompia pesadamente sobre a faixa de areia branca, todos os olhos choravam à medida que as ondas marulhavam seus lamentos. Nesse momento Beatriz se tornou diáfana e Érika, ganhou solidez, as duas se misturaram, e decidiram banhar os corpos unificados no mar. Beatriz se escondeu no corpo de Érika, aparecendo apenas raras vezes depois.

Naquela noite Érika observava o pesado homem que usava seu corpo com deleite, voltou a se lembrar de Beatriz, e tudo que ocorrera à ambas, Pedro, não reconhecera, porém sua sobrinha no interior daqueles olhos amarelos, mas sentiu a estranha sensação do metal frio penetrando seu peito repentinamente, a lâmina dilacerava sua carne repetidas vezes fazendo jorrar esguichos do líquido vermelho por toda a extensão do pequeno cômodo. Érika se deliciava com a expressão de espanto de seu tio, e sentia lá no fundo que Beatriz, mesmo sendo doce e santa, sentia sua alma ser lavada pelo sangue de seu algoz. Antes de cortar-lhe a garganta, Érika disse ao homem que, gritasse o quanto quisesse, mas ali ninguém poderia ouvi-lo. Atrás da moça aparecera novamente o corpo transluzente de Beatriz, que sorria junto a Érika, Pedro pode perceber em meio aos seus últimos momentos de vida, que os erros e perversões são cobrados com juros, e o salário da podridão da alma, é derramamento de seu sangue e a extinção de sua vida. O homem não irá desfrutar as venturas paradisíacas, mas levará consigo para a obscuridade da morte o pesar das quatro retinas amarelas as quais causou tanto sofrimento. Deus o abandonara, a vida chegara ao fim.

Well Calcagno
Enviado por Well Calcagno em 23/11/2012
Reeditado em 15/06/2013
Código do texto: T4001173
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