A casa da montanha (parte I)

O reencontro

“Um pouco de solidão nunca é demais pra ninguém”.

Sábias palavras sempre proferidas pelo avô que, desde a infância livre e feliz tanto lhe abrira os olhos para os reais prazeres da vida, como o de parar, de vez em quando, a fim de repensar no que fazer quando as coisas não iam lá muito bem. E a partir daí, chegar a algum lugar...

Foram essas palavras que a levaram àquele distrito montanhoso: Mauá – pouco mais de mil habitantes, a 600 km da capital. Algumas casas, um armazém grande, poucas lojas de souvenires, um posto médico, dois bares bem rústicos, sendo um bem espaçoso, visto de fora e uma casa de fantoches... Isso mesmo. Uma oficina bonecos. O dono, uma espécie de Gepeto brasileiro, parecia muito satisfeito com a vidinha que levava naquele lugarejo inóspito, onde poucos turistas apareciam, dado o pouco recurso do local. Isso para ela tornava o lugar ainda melhor. Paz e sossego – seu refúgio para revigorar e retornar ao trabalho exaustivo que labutava diariamente no hospital: psicóloga da ala infantil. Um trabalho exaustivo pelo fato de lidar com crianças em estado terminal. Ainda não conseguira se acostumar em ver mortes tão prematuras e tristes, após 18 anos de profissão.

Quando desceu do carro, às 8 horas de uma manhã neblinada, veio-lhe o dèjá vu inesperado: parecia demais com algum lugar conhecido, mas que não lhe vinha à mente totalmente – tamanho cansaço físico e mental. Descanso. "Preciso de descanso". Teria um mês de férias. Um mês em cinco anos - sem tirá-las. Primeiro, o trabalho lhe prendera e, como mais que dedicada profissional, priorizara as pequeninas criaturas tão carentes de tudo naquele momento de suas “vidas finitas", na verdade, quase findas. Depois, enveredou-se no trabalho a fim de desafogar as mágoas do desfecho idiota de um relacionamento que lhe custara seis anos de ciúmes, intrigas (da ex dele) e, por fim, desrespeito total: traição. Agora, só queria o descanso a que fazia jus. Escolhera o lugar num catálogo de uma revista de viagens, meio ao acaso, no consultório do dentista dias atrás. Ele mesmo já havia visitado Mauá e, só não ficaram uns dias porque a esposa estava grávida e o local, bem... Espantava a quem precisasse de uma urgência mais delicada. Mas o clima e o aval de ser um dos lugares mais lindos que já vira levaram-na até lá.

Aproximou-se do armazém e observou sua construção em madeira rústica, bem cuidada e grande para aquele local minúsculo. Sentiu-se avaliada pelo homem sério que, ao vê-la aparentemente tímida, abriu um sorriso simpático, enquanto tirava o pó de uma lata de castanhas de caju. Ela então lhe perguntou:

_ Bom dia. Estou procurando a velha cabana do senhor Moisés... Aluguei-a por uns dias e ...

_ Ah! A senhora deve ser a viúva que vinha descansar e escrever um livro sobre o lugar, não é?

Enquanto falava, observava-lhe as curvas disfarçadas numa calça jeans não muito justa, mas deixando belas formas a serem imaginadas. Aqueles seios fartos, apertados na camisa xadrez de tecido fino e meio justa, ah... deixaram-no excitado, cogitando se aquela seria a mulher tão comentada... Quando o entregador de mercadorias veio com a notícia da visitante, não sugeriu nada que lhe fizesse pensar ser aquela beldade. Era bem bonita, misteriosa. De pele bem clara e acetinada; possuía grandes olhos negros e os cabelos aloirados, meio cor de mel e encaracolados, os quais, uma moldura impecável para aquele belo rosto. Deliciosa figura. Mas não aparentava muita cortesia, não. Que pena...

_ Não, na verdade não sou nem escritora, tampouco viúva. Mas desejo, sim, descanso e paz. O senhor pode me ajudar? (Esperava que ele entendesse o duplo sentido das palavras ditas).

- Claro. Pegue o caminho que vai até aqueles eucaliptos e siga em frente, virando sempre à direita. Logo verá uma colina e uma casa de madeira, bem pequena e com um deck. Só que para chegar lá deve dar a volta pelo lado esquerdo da cachoeira. Assim pegará a estradinha que dá direto na casa. Tenha cuidado com a beleza da enorme queda d’água. Não se iluda: o Véu de Noiva é violento e não perdoa quem cisma em apreciá-lo muito de perto...

Enquanto comprava guarnições para prover seus primeiros dias, Helena pensava no avô. Ora! Por que perdera tão cedo pessoas tão queridas em sua vida? Criada pelos avós, após a perda dos pais num acidente de carro, aos cinco anos; depois, a perda do único irmão e cunhada, deixando um bebê de poucos meses... Estava tão sozinha, precisava de alguém pra conversar, entes querido por perto, mas nada! Todos se foram com exceção do sobrinho de 22 anos que agora morava fora do país, para estudar. Fez o que o homem lhe sugeriu e seguiu seu caminho. Nossa! Era longa a estrada. Já dirigia por mais de meia hora e nada de construção alguma... Que paisagem bucólica! Só se deu conta que havia vida animal naquele lugar, quando sentiu um baque no fundo do carro. Parou e viu um esquilo, ou algo parecido numa fuga desesperada árvore acima. Parecia ileso, graças a Deus! Andou mais um pouco e divisou finalmente o paraíso: uma região montanhosa cercada por um rio claro e de correnteza forte. Acima, duas construções – em madeira, mas a tal casa, tal qual vira em fotos, era a mais alta, circundada por pedras e um deck, com a vista magnânima do rio que desembocava na cachoeira de queda enorme. Que pintura, que beleza, quanta natureza em torno de um lugar só... Fez a volta que o homem lhe explicara de forma confusa e estranha e passou por outra casa, que não a "sua" – maior e mais sofisticada, construída parecia que a partir de uma enorme rocha, com uma varanda rodeando-lhe os outros dois lados, toda contornada em blindex e muitas flores refestelando o parco espaço ao entorno. Linda! Subiu um pouco mais, viu seu destino, então. Mas nada do que pudesse prever, fez refrear o frio na barriga quando divisou a casinha. Nenhuma foto fazia jus àquela construção em pinho de Riga, pequena, mas enormemente grandiosa em simplicidade e beleza. Estava ali o melhor hotel que poderia querer. A melhor e maior surpresa em termos de lugar. Era muito aconchegante! Logo ao abrir a porta, observou que fora usada há pouco tempo, pois não havia muita poeira aparente ou cheiro de mofo... Mofo? Ela pensara “mofo”? Que nada. Não havia possibilidade de se ter algo mofado naquele lugar arejado, com o sol a lhe aquecer àquela hora – e ao que parecia, sempre – não, ali era um lugar em que o cheiro das flores sobressaia em qualquer circunstância... A sala, pequena com lareira trabalhada em madeira e pedra, um sofá de dois lugares, uma cadeira de leitura acolchoada em couro marrom, um abajur rústico ao lado, mesa de centro pesada e grande, sobre um tapete de couro de boi nas cores marrom e preto, com pequenos borrões brancos para quebrar um pouco o tom escuro, mas dando aquela sensação de aconchego ao local. Havia uma caixinha sobre a mesa, junto a outras, mas que lhe chamou a atenção pelo entalhe e adornos específicos das regiões mais remotas do Peru, talvez Bolívia. Havia, ainda, uma pequena estante, com três livros apenas: o morro dos Ventos Uivantes ela conhecia bem, sem nem tocar. Era a mesma edição que possuía. Observou o janelão que tomava quase uma parede, protegido por uma enorme cortina de voal em tons pastel. Tinha também uns quadros de paisagens que combinavam com a decoração. Sala bonita. Gostou de lá. Continuou a vasculhar o ambiente: na cozinha, pouco mais de dois metros quadrados, uma minigeladeira, fogão, armário embutido e de parede e uma micro mesinha com duas cadeiras. Uma janela comprida e em madeira e vidros, bem ao estilo do lugar. Não teve curiosidade em abrir a porta e ver aonde dava... Mas quando entrou no único quarto, na verdade uma suíte, foi que teve a melhor surpresa: uma cama king, alta e, como pode antever, confortável - a cabeceira entalhada em couro; voal para proteção dos insetos, uma escrivaninha de um lado, a cômoda pesada do outro, e, ao fundo, um grande armário, bem rústico e antigo, dando o toque final no lugar que era um convite ao descanso... E ao amor. Na parede, dois quadros: um de uma paisagem delicada como as de Monet e o outro, uma mulher, menos clássica. Este segundo, na parede, acima da cabeceira da cama. Pintada em busto, tendo as montanhas como fundo. Incomum, bela e rústica ao mesmo tempo; com um olhar singular, que lhe chamou muito a atenção... Outra incógnita. Semelhança...? Foi até à porta balcão e ficou sem fôlego: a vista era magnífica. Dali ela avistava o rio bem abaixo e uma vegetação colorida e farta, às vezes espalhando-se pelas grandes pedras afora. Lindo! Ficaria ali por horas sem sentir o tempo passar. Entrou no pequeno banheiro e logo tomou um banho revigorante. Pegou as roupas na mala, vestiu um moletom confortável e partiu para o famoso deck. Foi construído tomando toda a frente da casa. Possuía duas espreguiçadeiras com rodinhas, uma pequena mesinha e alguns vasos com plantas de folhas cheias e vistosas. Era rodeado por uma cerca viva, florida e atraente até aos olhos menos apreciadores. Esta cerca funcionava como proteção e um adorno estonteante para aquele lugar. Que delícia!

Partiu para a cozinha e guardou os mantimentos que trouxera do armazém. Fez um chá, pegou uns sequilhos e sentou-se no deck, avaliando o sossego daquele lugar perfeito. Aquilo era a felicidade. Não se sentia só, pelo contrário, sentia-se acompanhada da mais bela forma de vida que lhe dava prazer no momento. Respirou fundo, sentiu o ar das montanhas e revigorou-se ainda mais. Era como se só agora sentisse vida naquele corpo e mente cansada. Não havia ar melhor que esse no mundo... Fechou os olhos e lembrou-se das suas risadas gostosas, da infância, da alegria que sempre fora sua companheira. E sorriu satisfeita. Pensou em descansar um pouquinho enquanto sorvia o chá e os biscoitos. Faria um almoço rápido e depois daria uma olhada na caixinha que tanto lhe chamara a atenção.

(Continua)

Luzia Avellar
Enviado por Luzia Avellar em 16/11/2012
Reeditado em 16/11/2012
Código do texto: T3988669
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